Autossabotagem: Roer unhas e procrastinar - Como o cérebro usa o "dano controlado" para se proteger (Mecanismo de sobrevivência)
A capacidade do nosso sistema nervoso central de processar informações é extraordinária, permitindo-nos prever consequências e tomar decisões cruciais para a sobrevivência. No entanto, essa mesma capacidade pode nos levar a comportamentos que, à primeira vista, parecem prejudiciais: as diversas formas de autossabotagem.
O que é autossabotagem e por que ela acontece?
A autossabotagem manifesta-se em atitudes como roer unhas, procrastinar ou nos criticarmos excessivamente. Embora pareçam irracionais, o psicólogo clínico Charlie Heriot-Maitland propõe que esses comportamentos têm raízes profundas no instinto de sobrevivência.
- Dano menor para evitar o maior: O cérebro, em essência, prefere lidar com a certeza de uma ameaça controlada e conhecida (o pequeno dano autoinfligido ou o adiamento) a enfrentar um risco presumivelmente maior e desconhecido, como um fracasso retumbante ou a rejeição.
- A busca por previsibilidade: Nosso cérebro anseia por um mundo previsível e controlável para garantir a sobrevivência. Situações de alto risco ou pouca certeza ativam nosso sistema de alerta, levando a mecanismos de defesa para retomar o senso de controle.
Diferentes formas de controle de danos
A autossabotagem se apresenta em várias roupagens, cada uma tentando, à sua maneira, proteger-nos de uma dor maior.
- A procrastinação como escudo: Adiar tarefas essenciais até o último minuto pode ser uma defesa contra o medo do fracasso ou da rejeição. É uma maneira de adiar o confronto com a possibilidade de não ser bom o suficiente.
- Perfeccionismo e esgotamento: A hiperconcentração e a atenção minuciosa aos detalhes tentam garantir que erros não sejam cometidos, evitando o fracasso. Contudo, essa exigência excessiva expõe a pessoa ao risco de estresse e esgotamento (burnout), o que, ironicamente, pode levar ao fracasso.
- Autocrítica extrema: Levar a autocrítica ao extremo pode enganar a mente, criando uma falsa sensação de controle e independência. A mente acredita que, ao ser a crítica mais dura, está se preparando para qualquer revés.
O sistema de alerta e a evolução
O famoso geneticista Theodosius Dobzhansky afirmou que "nada na biologia faz sentido se não for à luz da evolução". Nossas funções neuronais de alerta não são exceção.
- A inteligência como arma: Nossa maior arma contra predadores é a inteligência e a capacidade de analisar o perigo e antecipá-lo. Não é surpresa que o cérebro tenha evoluído para detectar perigos em quase todos os lugares, mesmo na ausência de uma ameaça real e imediata.
- Neurotransmissores em ação: Diante de uma ameaça, neurotransmissores como a noradrenalina, dopamina e o glutamato são acionados. Eles estimulam os sentidos e a atividade neuronal para avaliar a situação e responder de forma a garantir a sobrevivência.
O risco da profecia autorrealizável
O maior perigo da autossabotagem é quando ela se transforma em uma profecia autorrealizável.
- Medo de falhar: O medo exagerado de falhar pode levar à negação de desafios ou ao abandono de situações que poderiam ser enfrentadas com sucesso. A defesa contra o fracasso se torna a causa dele.
- Excesso de confiança: No outro extremo, uma percepção exagerada da própria capacidade pode levar a um relaxamento excessivo, resultando em desempenho inferior ao potencial real.
Tópicos específicos de autolesão
Em certos contextos, a autossabotagem se manifesta de formas mais intensas, buscando reduzir uma dor emocional insuportável.
- Dano autoinfligido na adolescência (NSSI): Cortes e outras formas de automutilação não suicida são, muitas vezes, mecanismos de defesa contra estados afetivos negativos, como ansiedade, depressão ou trauma (abuso sexual, bullying). O cérebro assume um dano menor para evitar uma dor psicológica muito maior. A liberação de opioides endógenos (beta-endorfinas) reduz temporariamente os sintomas de angústia.
- O caso do Transtorno do espectro autista (TEA): Pessoas com TEA podem ter comportamentos autolesivos (bater a cabeça, morder-se, coçar-se) como uma forma de acalmar a ansiedade, responder a um colapso sensorial (luzes, ruídos) ou lidar com situações estressantes que não conseguem compreender. É um mecanismo biológico de estimulação para evitar situações de agressividade maior.
A autossabotagem, em suas diversas formas, é um mecanismo biológico profundamente enraizado na nossa necessidade de sobrevivência. Compreender sua origem evolutiva e funcional é o primeiro passo para o tratamento. Terapias psicológicas focadas na redução da necessidade de autossabotagem e no enfrentamento da realidade com menos estresse e angústia são a chave para desarmar esse sistema de alerta hiperativo.
