Interação e violência policial: A análise multimodal que revela os gatilhos de morte - "Eu não consigo respirar" no Brasil

A frase “eu não consigo respirar”, um símbolo global da luta contra a violência policial após a morte de George Floyd nos Estados Unidos, também ressoa profundamente em realidades brasileiras. Apesar da aparente rotinização desses episódios de violência, compreendemos muito pouco sobre os mecanismos específicos que levam a decisões violentas durante uma abordagem. A professora Maria do Carmo Leite de Oliveira, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), argumenta, a partir de suas pesquisas, que a chave para prevenir essas tragédias pode estar na análise minuciosa da interação entre policiais e cidadãos, considerando a linguagem, o corpo e o contexto imediato.
O problema: A invisibilidade de dados e a busca por explicações
Um dos maiores obstáculos para combater a violência policial letal é a falta de dados confiáveis. Não se sabe, por exemplo, quantas pessoas morrem no Brasil vítimas do mata-leão, uma técnica de asfixia, pois essa informação não é registrada oficialmente. Diante desse vácuo, as justificativas para o uso da força frequentemente se resumem a “reação ao desacato” ou “autodefesa”. O antropólogo Kant de Lima levanta uma questão fundamental: a violência é resultado de ignorância sobre o procedimento correto ou de uma escolha consciente de ignorá-lo? A pesquisa da professora Maria do Carmo propõe uma terceira via, sugerindo que a resposta está no fluxo da interação social itself.
A solução proposta: A análise da conversa multimodal
A pesquisa utiliza uma metodologia inovadora chamada Análise da Conversa Multimodal. Esta abordagem vai além das palavras faladas, examinando gestos, posturas, olhares, tom de voz e o uso do espaço físico. O objetivo é identificar os “gatilhos” verbais e não verbais que, em frações de segundo, podem escalar uma situação rotineira para uma tragédia. Estudos similares, como o projeto “Talking Justice” nos Estados Unidos, já demonstram que treinar policiais apenas para impor autoridade pela “voz de comando” pode gerar reações mais duras diante de qualquer resistência verbal do cidadão.
Um caso concreto analisado: A escalada da violência passo a passo
A pesquisa analisou um vídeo intitulado “Policial da UPP agredindo morador”. A gravação mostra a abordagem a dois jovens no Rio de Janeiro. A análise detalhada revela que a violência não foi um ato instantâneo, mas uma espiral construída na interação:
- O policial Renan dá uma ordem direta:
“vambora, vamo pra delegacia”
. - O jovem João responde com uma recusa verbal:
“não vai não”
. - Enquanto fala, o policial avança, e o jovem recua, iniciando uma coreografia de contenção e resistência.
- A recusa verbal, embora configure desacato, não representava uma ameaça física. No entanto, o policial progressivamente aplica o mata-leão, uma técnica de risco extremo, enquanto repete a pergunta
“não vai o quê?”
. - O descontrole fica evidente quando outro policial, Roberto, intervém com um apelo:
“calma, calma, Renan”
. - Este caso ilustra como uma “luta verbal” e uma “luta corporal” se entrelaçam, criando um caminho perigoso que pode terminar em letalidade.
Importâncias e relevâncias da pesquisa:
- Prevenção de mortes evitáveis: Compreender os gatilhos interacionais permite desenvolver estratégias para interromper a escalada de violência antes que ela leve a um desfecho fatal.
- Melhoria da formação policial: A pesquisa aponta para a necessidade urgente de ir além do treinamento técnico e incluir o ensino de habilidades comunicativas e de análise de situações sociais complexas.
- Fortalecimento da confiança social: Uma polícia que interage de forma mais reflexiva e menos reativa pode ajudar a reconstruir a frágil relação entre a instituição e a população.
- Fornecimento de uma metodologia objetiva: A Análise da Conversa Multimodal oferece um ferramental científico e detalhado para analisar incidentes, superando explicações genéricas e promovendo uma accountability baseada em evidências.
- Aplicação prática imediata: A sugestão de usar videoanálise de casos reais em cursos de formação é um caminho tangível e acessível para melhorar a atuação policial no “calor da hora”.
Repensando a autoridade através da interação
A pesquisa evidencia que o gatilho para a violência muitas vezes não está em uma ameaça física real, mas na forma como a situação é percebida, interpretada e gerenciada no fluxo da interação. Como destaca o especialista em Linguística Forense Itiel Dror, a ação é determinada pela percepção. Portanto, capacitar os policiais a “ler” a situação em tempo real decifrando gestos, palavras e intenções é uma ferramenta poderosa para salvar vidas. A implementação de uma formação policial que incorpore essas análises representa um passo prático e fundamental para transformar uma cultura de confronto em uma prática de autoridade mais segura, eficaz e legitimada pela sociedade.