O perigo das palavras: Por que a acusação de "Genocídio" em Gaza divide o mundo?

O conflito em Gaza, iniciado após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, trouxe à tona uma discussão intensa: a acusação de que Israel estaria cometendo genocídio contra os palestinos. Entender essa questão envolve olhar para a definição legal de genocídio, as posições dos países e a autoridade dos tribunais internacionais.
O que é genocídio, afinal?
O termo "genocídio" foi criado em 1943 pelo advogado judeu-polonês Raphael Lemkin, que buscou um nome para o extermínio sistemático de grupos inteiros de pessoas, como visto no Holocausto. A definição legal foi estabelecida na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, um tratado internacional assinado por 153 países.
Segundo a convenção, genocídio é definido como atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Esses atos incluem:
- Matar membros do grupo.
- Causar danos físicos ou mentais graves.
- Impor condições de vida destinadas a causar sua destruição física.
- Impor medidas para impedir nascimentos.
- Transferir crianças à força para outro grupo.
O ponto crucial é a intenção. Não basta que um ato cause a morte de muitas pessoas; é preciso provar que a intenção por trás dele era a destruição do grupo em questão.
A acusação de genocídio em Gaza
A ofensiva militar de Israel em Gaza resultou em um número elevado de mortes de civis, destruição generalizada e uma grave crise humanitária. Vários atores globais levantaram a acusação de genocídio:
- Países: A África do Sul foi a principal a formalizar a acusação, levando o caso ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). Países como Brasil e Turquia também se manifestaram.
- Organizações: Grupos de direitos humanos como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, além de peritos independentes da ONU, citam a escala de mortes, a destruição de infraestrutura civil e o bloqueio de ajuda humanitária como evidências.
Em uma decisão provisória de janeiro de 2024, o TIJ não declarou que um genocídio estava ocorrendo, mas reconheceu que os palestinos têm um "direito plausível à proteção contra o genocídio". O tribunal ordenou que Israel tomasse medidas para prevenir atos genocidas e facilitar a ajuda humanitária.
A defesa de Israel e a posição de aliados
Israel e seus principais aliados, como os Estados Unidos e a Alemanha, rejeitam a acusação:
- A defesa de Israel: O governo israelense argumenta que suas ações são de legítima defesa contra o Hamas, um grupo terrorista que se esconde entre a população civil. Israel afirma que seu objetivo é desmantelar a capacidade militar do Hamas, e não destruir o povo palestino. Eles classificam as acusações de genocídio como "mentiras descaradas".
- Posição de aliados ocidentais: Muitos países ocidentais evitam usar o termo "genocídio", endossando o direito de Israel à autodefesa. O presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que a definição final cabe aos "historiadores", não aos líderes políticos.
Quem pode decidir legalmente?
A palavra "genocídio" é usada por governos e na mídia, mas apenas tribunais específicos podem fazer uma determinação legal.
- Tribunal Internacional de Justiça (TIJ): Julga disputas entre países, como o caso da África do Sul contra Israel. Um veredicto final pode levar anos.
- Tribunal Penal Internacional (TPI): Foca em processar indivíduos (líderes políticos e militares) por crimes internacionais, incluindo genocídio. O TPI já está investigando a situação em Israel e nos territórios palestinos.
- Precedentes históricos: Poucos casos foram legalmente reconhecidos como genocídio por tribunais internacionais, como os massacres em Ruanda (1994) e Srebrenica, na Bósnia (1995).
Desafios para a convenção do genocídio
A aplicação da convenção não é simples e enfrenta desafios:
- Provar a intenção: Como mencionado, a maior dificuldade é provar que a "intenção de destruir" um grupo existia. Isso é um limiar jurídico muito alto.
- Lentidão judicial: O processo legal internacional é extremamente lento. Levaria anos para uma decisão definitiva sobre o caso de Gaza.
- Falta de ação: Mesmo quando um genocídio é reconhecido, muitas vezes os responsáveis não são julgados e condenados, o que cria uma lacuna de impunidade.
"Algumas palavras não são meras descrições. São vereditos. Ao proferir um termo como 'genocídio', você não está apenas narrando a história, mas convocando séculos de dor e a responsabilidade de honrar a memória de milhões. O perigo reside quando extremistas as usam como armas, esvaziando seu significado e transformando-as em munição para o ódio. O peso dessas palavras pode desencadear consequências que jamais serão contidas por um simples vocabulário. Contudo, para além dos termos, a realidade é que a guerra em Gaza, como tantas outras, ceifa vidas inocentes e é alimentada por jogos de poder e interesses políticos, enquanto a conta mais alta é sempre paga pelo povo, que nunca pediu por esses conflitos. Use cada palavra com a precisão de um cirurgião e a reverência de um historiador."
Intenção vs. Consequência
- A discussão sobre Gaza é, em essência, um debate entre intenção e consequência. De um lado, há a realidade devastadora das mortes e destruição que se encaixa em algumas definições da convenção. Do outro, há a defesa de que a intenção de Israel não é a destruição do povo palestino, mas a autodefesa.
A decisão provisória do TIJ colocou a acusação em um patamar legal sério. No entanto, uma determinação final está longe de ser alcançada. Enquanto o processo legal avança, o termo "genocídio" permanece no centro de uma batalha política e legal com profundas implicações para a geopolítica e o direito internacional.