O que acontece quando uma IA faz sua entrevista de emprego? O que esperar e como se preparar para o processo seletivo do futuro
A busca por um novo emprego no Brasil está passando por uma transformação que, até pouco tempo, parecia coisa de ficção científica. A integração da Inteligência Artificial (IA) no recrutamento está remodelando a forma como empresas e candidatos interagem, trazendo eficiência, mas também levantando questões importantes sobre a humanização.
O caso pioneiro: Entrevista por áudio no WhatsApp
- A experiência de Everton Freire: O economista Everton Freire, de 33 anos, vivenciou um processo seletivo em que a entrevista de segunda etapa foi realizada por uma IA via WhatsApp, utilizando respostas em áudio.
- Eficiência vs. Frieza: A IA entregou um resultado imediato e positivo para o encaixe no perfil da vaga, otimizando o tempo de Freire. No entanto, ele descreveu um "misto de estranhamento" e resistência por não interagir com um ser humano, avaliando que a tecnologia "desumaniza" a busca por recolocação profissional.
Por que as empresas estão adotando a IA?
A adoção da IA é impulsionada por uma nova realidade no mercado e por vantagens operacionais significativas:
- Controle de volume: A democratização das candidaturas, especialmente via plataformas como o LinkedIn, gerou um volume de currículos humanamente impossível de gerenciar com agilidade.
- Aceleração pós-pandemia: O período da pandemia de COVID-19 impulsionou a guinada tecnológica em diversas áreas, incluindo os processos seletivos.
- Vantagens essenciais: A IA oferece escalabilidade, padronização e a possibilidade de reduzir vieses humanos nos filtros iniciais.
- Caminho sem volta: Especialistas do setor de tecnologia e acadêmicos, como o professor Edison Audi Kalaf (Insper), consideram que o impacto da IA nas organizações será maior do que o da internet no início dos anos 2000.
Como as entrevistas com IA funcionam na prática?
As plataformas de recrutamento que utilizam IA seguem um fluxo padronizado para otimizar o processo:
- Criação de vagas otimizada: A IA pode sugerir descrições de cargo e requisitos com base apenas no nome da função.
- Interações dinâmicas: Algumas ferramentas utilizam perguntas pré-definidas, enquanto outras são capazes de adaptar os questionamentos em tempo real, conforme as respostas fornecidas pelo candidato.
- Formatos variados: As entrevistas podem ser conduzidas por diferentes canais, como WhatsApp, websites específicos e até mesmo com ou sem o uso de câmera.
- Avaliação detalhada: Recrutadores recebem um painel de resultados no formato de ranking, incluindo as gravações das entrevistas e avaliações pormenorizadas para cada resposta do candidato.
Os desafios e as consequências indesejadas
Apesar dos benefícios operacionais, pesquisas acadêmicas e testes práticos apontam para consequências negativas que merecem atenção:
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Ênfase em palavras-chave: A IA exige que os candidatos utilizem termos técnicos específicos (palavras-chave) para se destacarem, mesmo que não sejam o foco principal da vaga.
Exemplo: Em testes da BBC, a palavra "SEO" (otimização para mecanismos de busca) foi exageradamente valorizada em uma vaga para jornalista júnior, onde era apenas um requisito "desejável". -
Barreiras de acesso: A tecnologia pressupõe que os candidatos possuam acesso estável à internet e tenham a habilidade de preencher formulários de maneira extremamente específica, podendo excluir talentos que não atendem a esses critérios.
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Falta de transparência: Muitas empresas não informam explicitamente que estão utilizando inteligência artificial no processo, gerando um desequilíbrio de poder e informação entre as partes.
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Risco de vieses algorítmicos: Pesquisadores da FGV alertam que se os dados de aprendizado da máquina forem discriminatórios, o algoritmo reproduzirá essa discriminação, podendo excluir perfis relevantes ou perder talentos.
Aspectos legais e a necessidade de transparência
A ausência de uma legislação específica sobre IA no Brasil não anula as leis já existentes, especialmente as de não-discriminação e proteção de dados:
- Discriminação na IA: O algoritmo não pode ter viés discriminatório. Caso isso ocorra, o candidato pode buscar indenização contra a empresa.
- Recomendações jurídicas: Especialistas recomendam que as empresas sejam transparentes sobre o uso da IA, assinem contratos com previsão de reparação por falhas com os provedores de serviço, armazenem as gravações das entrevistas e treinem seus profissionais de Recursos Humanos.
- Direito do candidato: Com base na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o candidato pode solicitar acesso aos dados de suas entrevistas. O Judiciário, no futuro, pode inverter o ônus da prova, cabendo às empresas demonstrar que não houve discriminação.
O equilíbrio necessário: Otimização e humanização
A implementação da IA é uma transformação profunda e, para que seja bem-sucedida, exige uma reflexão sobre a dimensão humana do trabalho:
- Acesso ao mercado: A pesquisadora Humberta Silva (FEA-USP) lembra que o acesso ao mercado de trabalho é fundamental para o indivíduo se tornar um cidadão pleno. Criar barreiras tecnológicas pode impactar a sociedade como um todo.
- O grande desafio: O equilíbrio entre a inegável agilidade e escalabilidade da IA e a preservação da dimensão humana nos processos seletivos é o principal desafio corporativo e regulatório para os próximos anos.
Como resume Humberta Silva: "Precisamos, como sociedade, entender que o acesso ao mercado de trabalho é a oportunidade para um indivíduo se tornar cidadão. Se criamos barreiras pela tecnologia, que tipo de sociedade a gente espera?". O equilíbrio entre inovação tecnológica e preservação da dimensão humana nos processos seletivos será um dos grandes desafios corporativos nos próximos anos, exigindo regulamentação adequada, transparência das empresas e adaptação consciente de candidatos e recrutadores.
