Militares réus no STF: Por que seus salários não são cortados? Entenda o dilema da justiça militar e a 'Morte Ficta'

O Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando o chamado "núcleo crucial" da trama golpista de 2022, que inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete outros réus, sendo seis deles militares. Uma questão central que surge, independente do veredito, é o destino dos vencimentos (salários e proventos) desses militares, que podem ultrapassar R$ 38 mil
. Diferentemente de um servidor público civil, um militar condenado na Justiça comum não perde automaticamente sua patente, seu status militar e, consequentemente, sua fonte de renda. Este processo é regido por um conjunto específico de leis e tramita pela Justiça Militar, criando um caminho jurídico distinto e complexo.
O porquê da manutenção do salário (pelo menos inicialmente)
A razão fundamental pela qual os réus militares mantêm seus vencimentos mesmo após uma potencial condenação pelo STF está na Constituição Federal. A Carta Magna estabelece que um militar só pode ser excluído das Forças Armadas o que acarreta a perda da patente e do soldo por meio de um processo judicial específico na Justiça Militar da União. O STF, sendo uma corte de Justiça comum, não tem o poder legal de cassar patentes. A decisão do ministro relator, Luís Roberto Barroso, ao receber a denúncia, já destacou este fato, deixando claro que a perda de posto é matéria para outra esfera judicial.
O papel crucial do Superior Tribunal Militar (STM)
A instância competente para decidir sobre a "indignidade" ou "incompatibilidade" de um oficial com a carreira militar é o Superior Tribunal Militar (STM). Conforme destacado pela presidente do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha, a corte atuará como um "tribunal de honra" nesses casos. Existem dois caminhos principais para que o processo chegue ao STM:
- Condenação acima de 2 anos: Se a pena definida pelo STF for superior a dois anos de prisão, o processo no STM é automático. O Ministério Público Militar (MPM) oferece uma ação de representação para analisar a perda do posto.
- Condenação abaixo de 2 anos ou absolvição: Mesmo nesses cenários, o processo pode ser iniciado através de um Conselho de Justificação dentro da Força Armada respectiva, que pode encaminhar o caso ao STM. O MPM também pode agir por entender que houve uma "desonra militar", independente do resultado no STF.
As consequências da perda de patente: Salário e a "Morte Ficta"
Caso o STM decida pela perda da patente, as consequências são profundas.
- Perda do salário: O militar deixa imediatamente de pertencer aos quadros das Forças Armadas. Consequentemente, perde o direito de receber qualquer vencimento, soldo ou provento diretamente.
- A polêmica "Morte Ficta": Aqui reside um dos pontos mais delicados e criticados do sistema. A Lei de Pensões Militares (Decreto-Lei nº 2.993/1941) prevê que a expulsão de um militar é equiparada ao seu falecimento para fins de pensão. Isso significa que, mesmo expulso por indignidade, seus dependentes (como cônjuge e filhos menores) podem ter direito a receber uma pensão proporcional ao seu tempo de serviço. Este mecanismo é alvo de intenso debate, visto que pode ser interpretado como um benefício mantido para famílias de condenados por crimes graves.
A relevância do debate no contexto nacional
Este tema transcende o caso específico e toca em questões fundamentais para o Estado Democrático de Direito.
- Igualdade perante a lei: Evidencia uma disparidade de tratamento entre militares e servidores públicos civis. Um civil condenado à prisão perde seu cargo e salário diretamente na sentença do juízo comum, sem a necessidade de um processo administrativo paralelo.
- Ajuste fiscal e reforma: O governo Lula enviou um projeto de lei em 2024 que propõe mudanças no sistema de aposentadorias e pensões militares. Um dos pontos centrais é justamente extinguir o instituto da "morte ficta", substituindo a pensão integral por um auxílio-reclusão (metade do salário) durante o período de encarceramento. Este item enfrenta forte resistência de parlamentares de direita e ligados às Forças Armadas.
- Controle de gastos públicos: O Tribunal de Contas da União (TCU) já se manifestou, entendendo que o direito à pensão "por morte" só deve vigorar após a morte real do militar, e não após sua expulsão. Este posicionamento fortalece a argumentação favorável à reforma.
Os valores envolvidos e situações individuais
Conforme dados do Portal da Transparência, os vencimentos militares dos réus em junho de 2025 eram:
- Augusto Heleno (General):
R$ 38.144,69
- Almir Garnier (Almirante):
R$ 37.585,59
- Walter Braga Netto (General):
R$ 36.881,74
- Paulo Sérgio Nogueira (General):
R$ 36.881,74
- Mauro Cid (Tenente-Coronel):
R$ 28.242,64
- Jair Bolsonaro (Capitão Reformado):
R$ 12.861,61
É crucial notar que Bolsonaro também recebe aposentadoria como ex-deputado (cerca de R$ 41 mil
) e um salário como presidente de honra do PL (outros R$ 41 mil
), valores estes que seguem regras distintas e não são afetados por um eventual processo no STM.
Um Processo em etapas com profundas implicações
Em síntese, uma condenação no STF é apenas o primeiro ato de um drama jurídico mais longo. A manutenção dos vencimentos militares após tal condenação não é um privilégio, mas sim uma consequência do rito legal específico que rege a carreira militar. A perda efetiva da patente e do salário depende de uma decisão posterior do Superior Tribunal Militar, que agirá como tribunal de honra. O desfecho final deste processo terá implicações significativas, não apenas para os réus, mas para o princípio da isonomia, para as finanças públicas e para o próprio arcabouço legal das Forças Armadas brasileiras, potencialmente sendo redefinido pelo Congresso Nacional através da reforma proposta pelo governo. O tema, portanto, permanece em aberto e sob intenso escrutínio público e institucional.