Cozinhar não é dom e sim habilidade: Rita Lobo e a Lancet na luta contra ultraprocessados - Desumanização da alimentação saudável
Há 25 anos, a chef Rita Lobo iniciou uma missão com o site Panelinha: democratizar o ato de cozinhar e incentivar uma alimentação baseada em "comida de verdade". Essa batalha contra os alimentos ultraprocessados—produtos industriais repletos de aditivos químicos—mostra-se mais crucial do que nunca. Uma entrevista recente dela à BBC News Brasil, somada a uma série especial da renomada revista científica The Lancet, ilumina os perigos desses produtos e traça um caminho para recuperarmos nossa relação saudável com a comida.
O que são alimentos ultraprocessados e por que são um problema global?
A definição de ultraprocessados vai além da ideia de "fast food" ou "comida industrializada". Eles são formulações industriais criadas a partir de ingredientes que você não encontraria em uma cozinha caseira, como extrato de soja, gordura vegetal hidrogenada, realçadores de sabor, emulsificantes e corantes.
- Dados alarmantes: A relevância do tema é escancarrada por dados concretos. No Brasil, esses produtos já representam 20% das calorias diárias consumidas pela população (USP). Em países de alta renda, como o Reino Unido, esse número salta para mais de 50% (The Lancet). Este não é um problema estético, mas de saúde pública. O consumo crescente de ultraprocessados está diretamente ligado ao aumento global de obesidade, doenças coronárias, diabetes, certos tipos de câncer e até problemas de saúde mental.
Como identificar um ultraprocessado? A regra de ouro.
Rita Lobo oferece uma diretriz simples e poderosa:
"Leia a lista de ingredientes do rótulo. Se tiver nomes de coisas que você não tem na sua cozinha, deixe no supermercado".
- Comida de verdade vs. Fórmula industrial: A comida de verdade é feita a partir de alimentos in natura (como um tomate) ou minimamente processados (como o feijão seco ou um iogurte natural que leva apenas leite e fermento). O ultraprocessado, por outro lado, é um produto "pronto para comer" que imita a comida, mas é uma invenção da fábrica. A batata frita caseira não é o problema; a versão congelada, cheia de amidos modificados e aditivos, é.
As armadilhas que nos afastam da cozinha
A chef analisa as complexas razões pelas quais as pessoas pararam de cozinhar.
- Mudanças sociais: A inserção da mulher no mercado de trabalho não foi acompanhada por uma redistribuição das tarefas domésticas, criando um vazio na cozinha que a indústria se apressou em preencher.
- Marketing massivo: Bilhões de dólares são investidos para convencer o consumidor, desde a infância, de que os produtos industriais são superiores ou mais práticos.
- Reducionismo nutricional: Este é um ponto crucial. Quando passamos a pensar na comida apenas como um conjunto de nutrientes ("preciso de proteína", "vou cortar carboidratos"), perdemos a noção do que é a comida em sua essência. Um ovo e um pote de whey protein passam a ser vistos como equivalentes, pois ambos "entregam proteína". Essa visão desumaniza a alimentação e nos torna vulneráveis a armadilhas de marketing.
O caminho de volta: Cozinhar e planejar
Rita Lobo é enfática: não é possível ter uma alimentação saudável sem saber cozinhar. E para cozinhar de forma consistente, é essencial o planejamento.
- Aprender a cozinhar é para todos: Cozinhar não é um dom, é uma habilidade. Assim como ler e escrever, todo mundo pode e deve aprender o básico. Não se trata de virar um chef, mas de adquirir autonomia para garantir refeições saudáveis, saborosas e acessíveis.
- O poder do planejamento: Decidir o que comer no momento da fome leva a escolhas pobres. Fazer um cardápio semanal e uma lista de compras, como faziam nossas avós, é a estratégia mais eficaz para economizar dinheiro, evitar desperdício e garantir que se tenha sempre ingredientes à mão.
O papel das políticas públicas e do consumo consciente
A série da The Lancet, assinada por 43 pesquisadores globais, é clara: a solução não depende apenas da escolha individual. São necessárias políticas públicas que dificultem o acesso e o consumo de ultraprocessados e incentivem a comida de verdade.
- Nosso poder como consumidores: Enquanto isso, nossas escolhas no supermercado têm impacto. Quanto mais compramos e cozinhamos alimentos in natura, mais fortalecemos essa cadeia. Rita Lobo alerta: "Quanto menos a gente comer comida de verdade, mais baratos vão ficar os ultraprocessados e mais caras vão ficar as opções realmente saudáveis".
O prato feito brasileiro: Um exemplo de excelência nutricional
O clássico "PF" (Prato Feito) brasileiro é celebrado como um modelo alimentar quase perfeito.
Uma fórmula equilibrada:
Ele reúne, naturalmente, quatro dos cinco grupos alimentares essenciais:
- Cereais: O arroz.
- Leguminosas: O feijão.
- Proteínas: O bife, ovo ou frango.
- Hortaliças: A salada ou o legume cozido.
- A combinação perfeita: O arroz com feijão forma uma sinergia nutricional poderosa. Juntos, eles fornecem todos os aminoácidos essenciais para formar uma proteína completa, tornando-se uma potência nutricional acessível e saborosa. A sobremesa ideal para completar a refeição seria uma fruta.
A mensagem central é de empowerment. O combate aos ultraprocessados não é sobre restrição ou culpa, mas sobre uma reconexão com o prazer e a autonomia de cozinhar. É entender que a comida de verdade—preparada com ingredientes conhecidos, seguindo tradições culinárias é a ferramenta mais poderosa para uma vida saudável. A ciência, representada pela The Lancet, e a prática culinária, representada por Rita Lobo, convergem para um mesmo aviso: retomar o controle do que comemos começa na nossa própria cozinha, com planejamento, habilidades básicas e a consciência de que cada escolha no supermercado é um voto a favor ou contra a nossa saúde e do sistema alimentar.
