Censura ou proteção? Além do padre Lancellott - O histórico de padres silenciados pela Igreja e as leis do Vaticano
A Arquidiocese de São Paulo determinou recentemente a suspensão das transmissões ao vivo das missas celebradas pelo padre Júlio Lancellotti, bem como o seu afastamento das redes sociais. A decisão, fundamentada no Código de Direito Canônico, levanta o debate sobre como a Igreja Católica exerce controle sobre seus religiosos em tempos de polarização digital.
O caso Lancellotti: O que mudou
- Suspensão de lives: As missas semanais na capela da Universidade São Judas, na Mooca, não são mais transmitidas pela internet.
- Recolhimento digital: Com 2,3 milhões de seguidores, o padre é uma das vozes mais influentes do catolicismo brasileiro e interrompeu a atualização de seus perfis sociais.
- Permanência no cargo: Diferente de rumores que circularam em redes de mensagens, Lancellotti permanece como pároco de São Miguel Arcanjo e Vigário Episcopal para o Povo da Rua.
- Posicionamento da Arquidiocese: O cardeal dom Odilo Scherer e a entidade tratam o caso como "âmbito interno", sem manifestações públicas detalhadas.
Os mecanismos de controle da Igreja
A Igreja Católica é uma instituição milenar baseada em uma pirâmide hierárquica rígida. Para manter a ordem, o Direito Canônico prevê instrumentos específicos:
- Promessa de obediência: Padres diocesanos devem obediência direta ao seu bispo. Qualquer discordância pública pode ser tratada como quebra de compromisso.
- Admoestação (Cânone 1339): Uma repreensão formal aplicada quando o comportamento do religioso gera "escândalo ou grave perturbação da ordem".
- Documento secreto: Essas advertências são registradas e guardadas no arquivo secreto da cúria (o órgão administrativo da diocese).
- Silêncio obsequioso: Uma imposição administrativa para que o religioso se abstenha de declarações públicas, publicações ou presença midiática para preservar a imagem da instituição.
Punição ou proteção? As duas faces da decisão
A restrição imposta a Lancellotti divide opiniões entre especialistas e fiéis:
- A tese da proteção: Algumas fontes ligadas à Igreja argumentam que o silêncio visa proteger o padre, de 77 anos, contra a escalada de violência, ataques de ódio da extrema-direita e tentativas de criminalização de seu trabalho social. Seria um "ato de cuidado" para evitar que o momento sagrado da missa vire palco de polarização política.
- A tese da censura: Teólogos e historiadores apontam que a medida freia uma voz progressista relevante. Ao silenciar o padre no ambiente digital, a Igreja limita o alcance de discursos voltados às minorias e aos moradores de rua, especialmente em um período que precede grandes debates eleitorais.
Histórico de silenciamentos no Brasil
O uso do "silêncio" não é exclusivo de alas progressistas, embora seja mais comum nelas:
- Leonardo Boff (Anos 80): O teólogo da libertação foi condenado ao silêncio pelo Vaticano por críticas à hierarquia da Igreja. Acabou deixando o sacerdócio anos depois.
- Ivone Gebara (Anos 90): A freira feminista foi punida com dois anos de silêncio e estudos no exterior após declarações divergentes sobre o aborto.
- Marcelo Rossi (Anos 2000): Representante da ala conservadora/carismática, o padre também enfrentou escrutínio do Vaticano por "excessos midiáticos" e personalismo, chegando a se afastar dos holofotes por meses sob orientação de seus superiores.
A soberania do Bispo
O Direito Canônico confere ao bispo o papel de legislador, juiz e executor em sua jurisdição. Seja por motivação disciplinar ou por estratégia de preservação institucional, a hierarquia católica mantém o poder de decidir onde e como seus sacerdotes podem se comunicar, lembrando que a missão religiosa, para a cúpula, deve sempre sobrepor-se à influência digital pessoal.
