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domingo, 12 de outubro de 2025 às 10:56 GMT+0

Dia da criança: Quando a data que celebra a infância surgiu para combater o trabalho infantil

Há um século, em 12 de outubro de 1924, era oficialmente instituído no Brasil o "dia da criança", então chamado de "festa da criança", por meio de um decreto do presidente Arthur Bernardes. Diferentemente da celebração comercial que conhecemos hoje, esta data nasceu com um propósito social profundo e urgente: chamar a atenção da sociedade e do poder público para as condições desoladoras em que viviam milhões de crianças brasileiras, especialmente as mais pobres. Este resumo conta a história dessa criação, explorando seus motivos nobres, suas contradições e seu legado que perdura até os nossos dias.

O contexto: A infância abandonada no Brasil do início do século XX

No brasil das primeiras décadas do século XX, a infância era um conceito frágil, especialmente para os mais pobres.

  • Trabalho infantil: Era comum que crianças de famílias humildes trabalhassem para ajudar no sustento da casa.
  • Ausência escolar: Muitas não frequentavam a escola, vagando pelas cidades em bandos.
  • Criminalização e prisão: Quando detidas por crimes ou, simplesmente, por vadiagem, iam para as mesmas cadeias que adultos criminosos. Dados da polícia do Rio de Janeiro (1907-1915) mostram que cerca de 250 crianças entre 9 e 15 anos foram encarceradas.
  • Alta mortalidade: A falta de higiene, alimentação inadequada e doenças contribuíam para índices elevadíssimos de mortalidade infantil.

A gênese da data: Congressos, modernidade e o "futuro da nação"

A ideia de criar um dia dedicado às crianças surgiu de um evento internacional.

  • Os congressos de 1922: A proposta partiu do 1º congresso brasileiro de proteção à infância e do 3º congresso americano da infância, realizados no rio de janeiro como parte das comemorações do centenário da independência.
  • A data simbólica: A escolha do dia 12 de outubro, data do descobrimento da América, foi intencional. O objetivo era associar a nova geração à ideia de um "novo mundo", incentivando todos os países americanos a adotarem a mesma data. A estratégia, no entanto, não funcionou, e cada país celebra em uma data diferente.
  • O projeto de modernidade: Conforme explica o pedagogo Moysés Kuhlmann Júnior, da universidade de Brasília (UNB), cuidar da infância era visto pela elite intelectual e política como um requisito para modernizar o país e sair do "atraso".

As duas facetas da proteção: Cuidado genuíno e controle social

A preocupação com as crianças, segundo os especialistas, foi ambígua, movida por sentimentos de caridade, mas também de medo e interesse econômico.

Os avanços em saúde e educação

  • Divulgação de cuidados: Pioneiros como o médico Carlos Arthur Moncorvo Filho divulgavam conhecimentos básicos de pediatria, alertando sobre higiene, os perigos de mamadeiras de metal e a importância do leite pasteurizado.
  • Combate à mortalidade: Essas informações salvaram incontáveis vidas.

A formação de mão de obra e a manutenção da ordem

  • O "futuro da nação": O historiador James Wadsworth, da faculdade Stonehill (EUA), explica que o discurso de que as crianças eram "o futuro da nação" tinha um alvo específico: as crianças pobres, devido à sua "força de trabalho potencial".
  • Substituição da mão de obra: O estado assumiu um papel paternalista para disciplinar e educar essas crianças, produzindo uma mão de obra "dócil, saudável e produtiva" para substituir o trabalho escravo recentemente abolido e contrabalançar a influência dos imigrantes.
  • Proteção do status quo: Wadsworth é enfático: "Toda a preocupação da elite brasileira com a infância pobre não tinha como fim garantir o bem dessas crianças, mas, sim, preservar o status quo".

A voz dos arquivos: Os debates no Senado Federal

Documentos históricos do arquivo do senado comprovam essa visão utilitarista da infância.

  • Senador Francisco Glicério (1912): Defendeu investir em instituições de assistência à infância para "preparo da própria geração brasileira", argumentando que era melhor do que gastar com a imigração.
  • Presidente Hermes da Fonseca (1913): Em mensagem ao Congresso, pediu cuidado com as crianças abandonadas, que poderiam se tornar "elementos deletérios", mas também "elementos preciosos de trabalho e progresso".
  • Senador Alcindo Guanabara (1917): Apresentou um projeto para criar reformatórios com cursos profissionalizantes de baixa qualificação (alfaiataria para meninos, costura para meninas). Seu argumento era que era mais barato e produtivo para o estado educar do que prender.

Conquistas legais e legados ambíguos

O movimento culminou em conquistas legais importantes, mas carregadas das mesmas ambiguidades.

  • O código de menores (1927): Assinado no dia da criança de 1927, foi a primeira grande lei de proteção à infância. Ele elevou a maioridade penal para 14 anos (era 9), proibiu o trabalho antes dos 12 anos e criou juizados específicos para menores.
  • Componentes machistas e racistas: Wadsworth aponta que os programas eram dirigidos por homens para mães, sem consultá-las. Além disso, os "concursos de robustez infantil" de Moncorvo Filho, que premiavam apenas bebês brancos, promoviam um ideal eugênico de "branqueamento" da população.
  • Do código de menores ao ECA: O historiador vê os esforços do início do século como precursores da Constituição de 1988 e do estatuto da criança e do adolescente (ECA), que mudou o foco da punição para a garantia de direitos.

100 anos depois, um espelho de avanços e desafios persistentes

O centenário do dia da criança nos convida a uma reflexão profunda. A data surgiu de um misto de idealismo civilizatório e cálculo social, buscando salvar crianças da morte e do abandono, mas também moldá-las para servir a um projeto de nação elitista. O legado dessa época ainda ecoa:

  • Avanços inegáveis: Saímos de um país que prendia crianças de 9 anos para um que as reconhece como sujeitos de direitos, graças ao eca.
  • Desafios persistentes: Como alerta Moysés Kuhlmann Júnior, a existência da lei não resolve tudo. A falta de acesso universal à creche de qualidade e a visão de que a educação para as classes pobres deve ser apenas minimalista são resquícios diretos da mentalidade do início do século XX.

A transformação do 12 de outubro em uma data majoritariamente comercial, a partir da década de 1960, ofusca essa história complexa. Conhecer as origens da "festa da criança" é essencial para lembrar que, mais do que presentear, a data é um convite permanente para garantir que todos os direitos conquistados ao longo desses 100 anos sejam, de fato, uma realidade para cada criança brasileira.

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