Golpe da caridade: Criminosos usam vídeos de crianças com câncer para desviar milhões em doações
Uma investigação profunda da BBC Eye revelou a existência de uma rede criminosa internacional que utiliza crianças gravemente doentes para arrecadar milhões de dólares em doações que, na maioria das vezes, nunca chegam ao destino prometido. O esquema envolve manipulação emocional, cenários forjados e a exploração de famílias em extrema vulnerabilidade.
O Modus operandi: Fábrica de emoções forjadas
Para garantir que os vídeos gerassem o máximo de engajamento e doações, a rede seguia um roteiro rigoroso e cruel:
- Seleção de perfil: Recrutadores buscavam crianças "fotogênicas", geralmente entre 3 e 9 anos, preferencialmente sem cabelo devido ao tratamento.
- Encenação e coação: Famílias eram instruídas a mentir. Em um dos casos, uma mãe foi coagida a raspar a cabeça do filho e usar cebolas e mentol para forçar a criança a chorar diante das câmeras.
- Roteiros em inglês: Crianças que sequer falavam o idioma eram obrigadas a decorar falas apelativas como "Por favor, salve minha vida".
- Falsas promessas: Os pais recebiam pequenos "cachês de filmagem" (entre US 700 e US 1.500), sob a promessa de que o grosso das doações custearia tratamentos caros.
Números alarmantes e destino do dinheiro
Embora as organizações aleguem que as campanhas foram "fracassos", os dados mostram uma realidade diferente:
- Arrecadação milionária: Apenas em um grupo de nove famílias acompanhadas, a rede arrecadou cerca de
US$ 4 milhões (mais de R$ 20 milhões). Nenhuma dessas famílias recebeu o montante. - O caso de Khalil: Uma campanha em nome de um menino filipino arrecadou
US$ 27 mil. A mãe foi informada de que a ação falhou. Khalil morreu um ano depois sem acesso ao tratamento prometido. - O caso de Ana: Na Colômbia, uma campanha para a menina Ana arrecadou
US$ 250 mil. Quando a família cobrou os valores, a intermediária afirmou que o vídeo "nunca foi publicado". - Justificativa de custos: Quando questionados, os líderes da rede afirmam que 100% do dinheiro foi gasto em publicidade. No entanto, especialistas indicam que o padrão ético para gastos com marketing em caridade não deve ultrapassar 20%.
Os principais articuladores
A investigação identificou nomes e entidades que operam sob diferentes fachadas em vários países:
- Erez Hadari: Cidadão israelense residente no Canadá, identificado por diversas famílias em diferentes continentes como o "diretor" das filmagens.
- Organizações de fachada: Foram identificadas entidades como
Chance Letikva, Walls of Hope, Saint Raphael, Little Angels e Saint Teresa. - Endereços fantasmas: A BBC visitou endereços registrados em Nova York e Israel, mas não encontrou qualquer sinal físico dessas organizações.
Impacto humano: "Dinheiro de sangue"
O trauma deixado pela rede vai além do prejuízo financeiro. Pais que perderam seus filhos agora descobrem que a imagem de suas crianças continua sendo usada para atrair doações online, mesmo após o falecimento.
- Olena Firsova, mãe de uma criança ucraniana usada no esquema, define a situação como "imoral". Para as famílias, o sentimento é de que o dinheiro que poderia ter salvado a vida de seus filhos foi desviado para financiar o luxo dos golpistas.
Como se proteger de golpes de doação
Autoridades e especialistas recomendam cautela ao realizar doações online:
1. Verifique o registro: Cheque se a ONG possui registro oficial nos órgãos reguladores do país de origem.
2. Transparência financeira: Instituições sérias publicam relatórios de auditoria e detalham o uso dos fundos.
3. Cuidado com apelos extremos: Desconfie de vídeos que pareçam excessivamente produzidos ou que utilizem crianças em situações de humilhação ou choro forçado.
4. Contato direto: Se possível, tente verificar a veracidade da história com hospitais ou fontes locais independentes.
Video BBC(documentário): Global fundraising network scamming children with cancer out of millions – BBC World Service Docs
Enquanto crianças morrem aguardando tratamentos que nunca foram pagos, criminosos transformam a dor em mercadoria e a esperança em lucro. Essa rede não apenas rouba dinheiro, mas rouba o tempo e a chance de sobrevivência de quem não tem nada além da pressa. Doar para essas campanhas sem verificação não é um ato de caridade; é, infelizmente, alimentar uma indústria que lucra com o último suspiro de uma criança.
