O poder resiste: Por que a megaoperação mais letal do RJ não vai deter o "Comando Vermelho" (Origem ditatorial da facção)
A história do Comando Vermelho (CV) é um estudo de caso da falência do sistema prisional brasileiro e da complexa evolução do crime organizado. Nascida no interior de uma prisão, a facção se transformou de um grupo de defesa interna em uma potência do narcotráfico com alcance nacional.
A semente no sistema prisional (anos 70)
O nascimento do CV ocorreu em um local paradoxal: o Instituto Penal Cândido Mendes, em Ilha Grande (RJ), durante a Ditadura Militar.
- A convivência forçada: Presos políticos em sua maioria de classe média, mais instruídos e detidos por crimes de "segurança nacional" como assalto a bancos (para financiar a resistência) foram misturados a detentos de crimes comuns.
- O cadinho ideológico: Os presos políticos intermediaram negociações e ensinaram aos criminosos comuns sobre seus direitos e organização. Essa união forjada na adversidade deu origem à "Falange da Segurança Nacional", posteriormente chamada de "Falange Vermelha".
- A organização interna: Líderes como William da Silva Lima, o "Professor", descreveram o grupo inicial como uma forma de organizar o espaço carcerário e estabelecer regras de convivência. A imprensa, mais tarde, batizaria o grupo de Comando Vermelho.
A virada para o crime organizado e o narcotráfico (anos 80)
Com a anistia, o grupo perdeu sua base ideológica inicial, mas manteve a estrutura para se adaptar a novos e mais lucrativos objetivos.
- O vazio pós-anistia: A Lei da Anistia (1979) libertou os presos políticos, mas deixou a estrutura de organização carcerária para trás. A luta por direitos sociais foi substituída por objetivos puramente criminais.
- A expansão econômica: Após grandes fugas em 1980, o CV utilizou o capital acumulado com assaltos a bancos para investir no promissor mercado de tráfico de cocaína. O Brasil, em especial o Rio de Janeiro, tornou-se um entreposto crucial nas rotas internacionais da droga.
- O ciclo vicioso da violência: A proteção dessa economia ilícita, que não podia recorrer ao Estado em caso de roubo, exigiu o armamento pesado da facção. Esse ciclo alimentou o conflito e a corrupção: policiais corruptos passaram a fornecer armas aos criminosos, culminando nos picos de violência do Rio de Janeiro na década de 1990.
A estratégia de expansão e o alcance nacional
O CV expandiu-se do Rio de Janeiro, tornando-se um ator na segurança pública de quase todo o país.
- A estrutura de "franquia": O modelo do CV não é uma hierarquia rígida e centralizada, mas sim uma rede de parcerias e "donos de morro", o que facilitou a rápida aceitação e replicação em outros estados.
- O efeito colateral das transferências: A política governamental de transferir líderes do CV e do Primeiro Comando da Capital (PCC) para presídios federais teve um resultado inverso ao desejado. Em vez de enfraquecer o grupo, ela espalhou a ideologia e os métodos da facção, nacionalizando sua influência de 10 para 25 estados brasileiros.
- A diversificação dos negócios: Embora o tráfico de drogas permaneça central — com destaque para o domínio de rotas na Amazônia —, a facção diversificou suas fontes de renda, infiltrando-se em mercados ilegais bilionários como ouro, combustíveis, bebidas e tabaco.
A intensificação do conflito e o cenário atual
A modernização do CV e a resposta do Estado culminaram em uma escalada de violência com consequências trágicas e questionamentos.
- A megaproperação mais letal: A "Operação Contenção" de outubro de 2025, realizada nos Complexos do Alemão e da Penha, se tornou a mais letal da história do Rio de Janeiro. O balanço oficial confirmou
64 mortes (sendo 60 de criminosos e 4 de policiais) e 81 presos, além da apreensão de dezenas de fuzis. - Tática de retaliação e caos urbano: Em resposta à incursão policial, a facção orquestrou uma grande retaliação, ordenando o fechamento de importantes vias expressas, como a Linha Amarela e trechos da Avenida Brasil. Ônibus e caminhões foram atravessados nas pistas com pneus em chamas, provocando o estágio de atenção na cidade e afetando o transporte e os serviços essenciais.
- Guerra tecnológica no limite: A operação evidenciou o novo patamar de armamento e tática do CV, com o uso de drones para lançar explosivos e o emprego de fuzis de alto poder de fogo. O Estado respondeu com um grande aparato logístico, incluindo 2.500 agentes, blindados e helicópteros.
- A ineficácia do confronto maciço: O evento reforça a conclusão de que ações puramente baseadas na força, embora resultem em prisões e apreensões, não resolvem o problema de fundo da segurança. O alto número de mortes levanta o debate sobre a letalidade policial e a necessidade de políticas de segurança mais eficazes e humanizadas.
O desafio persistente para o estado
A trajetória do Comando Vermelho é fundamental para a compreensão da segurança pública nacional, servindo de alerta e estudo.
1. Quase 50 anos de história: O CV é a organização criminosa mais antiga do Rio de Janeiro, com sua origem intimamente ligada a um período sombrio da história nacional: a Ditadura Militar.
2. Relevância geopolítica e econômica: A facção não é apenas um problema local; sua presença em 25 estados a torna um ator crucial na segurança pública de todo o Brasil e um motor de uma economia paralela bilionária, desestabilizando mercados e corrompendo estruturas.
3. O ciclo de violência: A megaoperação de outubro de 2025 é o exemplo mais recente de que ações de confronto, por si só, não contêm o grupo. Os dados e a realidade mostram que o Comando Vermelho soube se adaptar, modernizar e expandir, tornando-se um poder paralelo complexo e um desafio persistente.
O poder paralelo imbatível
O Comando Vermelho não é apenas uma facção, mas um poder paralelo forjado na falência histórica do Estado, desde as prisões da Ditadura até a atualidade. A megaoperação mais letal do Rio de Janeiro (outubro de 2025), com seu rastro de mortes e o caos da retaliação organizada, é a prova cabal: estratégias baseadas unicamente no confronto alimentam um ciclo vicioso e sangrento. O CV, modernizado taticamente e com alcance nacional e bilionário, segue desafiando a soberania e a segurança do país, exigindo uma resposta que, para ser eficaz, precisa ir além do poder de fogo e mirar nas raízes estruturais do crime e da desigualdade.
