Por que o espiritismo "vingou" no Brasil? A história por trás do maior país espírita do mundo

A doutrina espírita, codificada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, em meados do século 19, encontrou seu solo mais fértil longe de seu berço europeu. Enquanto na França o espiritismo é praticamente desconhecido pela população geral, no Brasil ele floresceu, se adaptou e se tornou uma força religiosa e cultural singular. Este resumo explora as razões históricas, sociais e culturais para esse sucesso único, analisando sua trajetória desde sua chegada até os desafios atuais.
A gênese: Kardec e a codificação
Tudo começou com a curiosidade intelectual de Allan Kardec. Ele investigou metodicamente o fenômeno das "mesas girantes", muito populares nos salões franceses da época. Em 1857, publicou "O Livro dos Espíritos", obra fundamental que ele não considerou a criação de uma nova religião, mas a "codificação" de um conhecimento transmitido pelos espíritos através de um método que mesclava ciência, filosofia e religião cristã. Este caráter racional e investigativo foi crucial para sua aceitação inicial entre as elites.
A chegada e a consolidação no Brasil
O marco inicial do espiritismo no Brasil é a primeira sessão espírita realizada em Salvador, em 17 de setembro de 1865, liderada pelo jornalista Luís Olimpio Teles de Menezes. Inicialmente, a doutrina atraiu a elite urbana e intelectual, católicos não dogmáticos em busca de uma visão de mundo mais moderna e compatível com a ciência. A hostilidade da Igreja Católica, que via as crenças na reencarnação e na comunicação com os espíritos como uma ameaça, foi um obstáculo inicial. No entanto, o perfil "científico" e socialmente privilegiado de seus primeiros adeptos ajudou a doutrina a ganhar respeitabilidade e a se institucionalizar, criando federações e oferecendo assistência social.
As chaves do sucesso: Por que o espiritismo "vingou" no Brasil?
Vários fatores convergiram para o crescimento exponencial do espiritismo no país, especialmente entre as décadas de 1970 e 2010, quando seu número de adeptos saltou mais de 720%.
- Sincretismo religioso: O Brasil é um caldeirão de tradições religiosas—catolicismo, religiões de matriz africana e indígenas. O espiritismo soube dialogar com todas elas. Surgiram termos como "espiritólico" e "catoespírita", ilustrando a facilidade com que os brasileiros amalgamaram crenças. A umbanda, por exemplo, é uma religião tipicamente brasileira que incorporou muitos conceitos kardecistas.
- Abrasileiramento por líderes carismáticos: Figuras icônicas como Chico Xavier, Bezerra de Menezes e Divaldo Franco foram fundamentais. Eles popularizaram a doutrina, "traduziram" seus conceitos para a realidade brasileira e a humanizaram através de uma imensa obra de caridade e psicografia.
- Ocupação de um vácuo religioso: Com a gradual perda de fiéis do catolicismo tradicional, o espiritismo ofereceu uma alternativa "moderna" e "racional" para a classe média urbana em ascensão. Ele apresentava uma religiosidade que valorizava a caridade prática, o estudo e uma suposta compatibilidade com o pensamento científico, distanciando-se dos dogmas católicos mais rígidos.
- Plasticidade doutrinária: Como aponta o antropólogo Bernardo Lewgoy, o espiritismo brasileiro conseguiu a proeza de conciliar elementos aparentemente contraditórios: ciência e religião, tradição e modernidade. Essa plasticidade permitiu que ele se enraizasse em diferentes estratos da sociedade.
O contraste internacional: Por que não deu certo em outros países?
O sucesso brasileiro é um caso atípico. Na França, o forte laicismo republicano e o poder da Igreja Católica impediram sua popularização em massa, mantendo-o restrito a círculos intelectuais. Em países de maioria protestante, como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, a doutrina encontrou uma barreira cultural diferente. Mesmo em nações católicas como Itália, Espanha e Portugal, a Igreja exerceu um controle mais rígido, não permitindo o mesmo florescimento sincretista e a convivência com outras práticas religiosas que caracterizaram o Brasil.
O cenário atual: Declínio numérico ou metamorfose?
O Censo de 2022 apontou uma redução na porcentagem de autodeclarados espíritas no Brasil, de 2,2% (2010) para 1,8% da população. Especialistas apontam uma "concorrência tripla" para explicar essa mudança:
- A expansão evangélica: Que oferece um apelo comunitário e discursos diferentes.
- A legitimação das religiões afro-brasileiras: Com um maior letramento racial e orgulho identitário, muitos que antes se declaravam "espíritas de umbanda" agora assumem sua fé como umbandistas ou candomblecistas.
- A secularização: A religião institucional perde espaço para o individualismo e experiências espiritualistas não vinculadas a uma doutrina específica.
- Cenário político: A polarização e a associação de parte do espiritismo organizado a pautas conservadoras afastaram alguns fiéis.
Entretanto, analisa Lewgoy, isso pode ser menos um declínio e mais uma "metamorfose". O espiritismo hoje possui um perfil de alto nível educacional (48% dos espíritas têm ensino superior completo) e grande influência cultural, controlando um vasto mercado editorial, redes de hospitais e instituições de caridade. Seus termos, como "carma" e "mediunidade", permeiam o vocabulário nacional. Ele pode estar se transformando em uma influência cultural e ética de elite, antecipando tendências de uma espiritualidade contemporânea que valoriza a experiência individual e o diálogo com a ciência.
Uma religião com DNA brasileiro
O espiritismo não apenas chegou ao Brasil há 160 anos, mas foi profundamente remodelado por ele. Sua história de sucesso é a história de uma doutrina que soube se adaptar, sincretizar e responder aos anseios de uma população em transformação. Seu futuro, embora não seja mais de crescimento numérico explosivo, parece ser de consolidação como uma força intelectual e cultural significativa. O espiritismo brasileiro é, portanto, um fenômeno único, um caso de adoção e adaptação tão profunda que se tornou, em muitos aspectos, uma expressão genuína da complexa identidade religiosa do Brasil.