Xenotransplante vs. Quimeras: O limite ético por trás dos órgãos humanos cultivados em porcos
O avanço da medicina traz à tona questões éticas complexas, especialmente no que tange ao transplante de órgãos e o uso de animais. O debate sobre a aceitação de órgãos de porcos em pessoas (xenotransplante) e a proibição de cultivar órgãos humanos em porcos (quimerismo) revela uma aparente contradição nas diretrizes de pesquisa.
A seguir, exploramos os pontos cruciais que alimentam essa controvérsia, desvendando as prioridades e temores que moldam as políticas atuais.
A urgência do xenotransplante: Vencer a crise de ´órgãos
A principal força motriz por trás do uso de órgãos de porcos geneticamente modificados em humanos é a crise global de escassez de órgãos.
- Demanda fatal: Mais de 100.000 pessoas nos EUA aguardam transplantes, e muitas morrem antes que um órgão humano compatível se torne disponível.
- A solução inovadora: Cientistas desenvolveram a técnica de editar genes de porcos (xenotransplante) para que seus órgãos (como rins) sejam mais toleráveis pelo sistema imunológico humano, oferecendo uma alternativa de vida imediata.
- O desafio persistente: Apesar dos avanços, a rejeição imunológica continua sendo um problema central. Os receptores ainda necessitam de medicamentos potentes (imunossupressores) por toda a vida, e a rejeição, embora retardada, ainda pode ocorrer.
O foco da proibição: O temor de tornar o porco "demasiado humano"
Em contraste com o xenotransplante, a pesquisa para cultivar órgãos feitos inteiramente de células humanas dentro de porcos (quimerismo) teve seu financiamento suspenso pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA em 2015.
- A abordagem do quimerismo: Esta técnica envolve desativar o gene de formação de um órgão específico no embrião de porco e injetar células-tronco humanas, fazendo com que o porco desenvolva um órgão geneticamente compatível com um futuro paciente. Teoricamente, isso eliminaria a rejeição.
- A preocupação moral central: O temor principal reside no risco ético de as células-tronco humanas se espalharem pelo corpo do porco, especialmente no cérebro. Os reguladores temem que isso possa levar a "alterações no estado cognitivo" do animal, concedendo-lhe uma consciência ou autoconsciência semelhante à humana.
- A consequência ética: Se o animal atingisse um nível de consciência humana, seu "status moral" seria elevado, exigindo que fosse tratado como um sujeito de pesquisa humano, o que inviabilizaria seu uso como "fábrica" de órgãos.
A falha lógica na argumentação de status moral
A crítica ética aponta uma inconsistência no raciocínio por trás da proibição do NIH, focada unicamente na presença de células humanas:
- Status moral e espécie: Na prática, as regulamentações de pesquisa conferem proteção especial a um ser com base no pertencimento à espécie humana, e não em capacidades cognitivas específicas (como autoconsciência ou uso da linguagem). Se fosse pela capacidade, a inserção de células de golfinhos ou primatas em porcos deveria gerar o mesmo alarme.
- A contradição na política: Porcos criados para xenotransplante já carregam genes humanos, mas não são vistos como "seres meio-humanos". No entanto, a política de quimerismo trata um porco com células humanas como se ele pudesse de fato se tornar um membro da espécie humana.
- A falsa equivalência: A presença de células humanas não transforma geneticamente um porco em humano. A preocupação de que células humanas aleatórias no cérebro tornariam o porco autoconsciente e, portanto, "humano", é considerada um equívoco sobre o que confere status moral aos seres humanos.
Em suma, a permissão para colocar órgãos de porcos em pessoas é guiada pela urgência da necessidade médica e por ser um método que (apesar da rejeição) tem avançado com sucesso prático. Já a proibição de cultivar órgãos humanos em porcos é impulsionada por um medo especulativo de cruzar a fronteira da espécie e de, inadvertidamente, criar um ser com status moral humano para fins de pesquisa, um cenário que as diretrizes atuais não conseguem acomodar.
