O código da personalidade: Quatro temperamentos antigos e o legado na psicologia moderna - De Hipócrates aos Big Five

A busca por catalogar e compreender a personalidade humana é uma jornada que atravessa mais de dois milênios. Desde as teorias da Grécia Antiga até os modelos psicológicos atuais, o desejo por um sistema que defina quem somos revela muito sobre nossa própria natureza e o anseio por autoconhecimento.
O gênese: A teoria humoral e os quatro temperamentos
A pedra angular dessa longa história é a Teoria dos Quatro Humores, um sistema que dominou o pensamento ocidental por séculos. Suas raízes filosóficas remontam a Empédocles, que propôs os quatro elementos clássicos — Terra, Água, Fogo e Ar —
como os blocos de construção do universo.
A sistematização médica é creditada a Hipócrates, que desenvolveu a teoria dos quatro humores corporais: Bile Amarela, Bile Preta, Fleuma e Sangue
. Séculos depois, Galeno codificou o sistema, definindo os quatro temperamentos associados:
1.
Colérico: Dominado pela Bile Amarela, era caracterizado como irascível, de "cabeça quente", teimoso e enérgico.
2.
Melancólico: Associado à Bile Preta, era visto como depressivo, triste e propenso à reflexão profunda.
3.
Sanguíneo: Ligado ao Sangue, era descrito como extrovertido, alegre, sociável e de boa natureza.
4.
Fleumático: Relacionado à Fleuma, era o tipo calmo, paciente, gentil e introspectivo.
Esta não era apenas uma teoria médica, mas uma visão holística que conectava o ser humano ao cosmos. Cada temperamento era associado a um elemento, uma estação do ano e uma fase da vida, tornando-se um guia completo para a existência.
A resiliência cultural da teoria
A importância da Teoria Humoral foi imediata e duradoura, moldando a cultura por mais de mil e quinhentos anos. Ela serviu como um manual prático para a vida, determinando dietas, tratamentos médicos e até o local de moradia, tudo em busca do equilíbrio dos humores. Sua influência cultural foi profunda, com os textos de Galeno sendo considerados "livros sagrados" na medicina por séculos. Sua estrutura permeou a arte e a literatura, sendo evidente nas obras de Shakespeare, onde personagens são explicitamente moldados por seus humores, tornando seus arquétipos reconhecíveis até hoje.
O legado surpreendente na psicologia moderna
Embora a base biológica dos humores tenha sido cientificamente desacreditada, a estrutura de quatro tipos ressurgiu de maneira fascinante na psicologia. Nos anos 1950, o teórico Hans Eysenck desenvolveu um modelo de personalidade baseado em duas dimensões principais: Extroversão e Neuroticismo. Ao combiná-las, ele chegou a quatro tipos que espelhavam surpreendentemente os humores antigos:
- Colérico: Alto Neuroticismo e Alta Extroversão.
- Melancólico: Alto Neuroticismo e Baixa Extroversão.
- Sanguíneo: Baixo Neuroticismo e Alta Extroversão.
- Fleumático: Baixo Neuroticismo e Baixa Extroversão.
Mais recentemente, o modelo mais aceito hoje é o dos "Cinco Grandes Fatores" (Big Five). Pesquisas posteriores, como as de Colin Deyoung, mostraram que esses fatores podem ser agrupados em dois meta-traits superiores: Plasticidade (Extroversão + Abertura à Experiência) e Estabilidade (Baixo Neuroticismo + Amabilidade + Conscienciosidade). A combinação desses dois fatores superiores também gera quatro categorias que, mais uma vez, se alinham aos temperamentos clássicos.
A precaução necessária: Os limites da classificação
- Apesar desses paralelos históricos, a psicologia moderna impõe limites cruciais à ideia de "tipos" fixos de personalidade. O consenso científico é que a personalidade não existe em "caixas" discretas, mas se manifesta em um espectro contínuo, com a maioria das pessoas se situando no meio, e não nos extremos dos traços.
- Existe um risco da simplificação excessiva em sistemas categóricos populares, como o Indicador de Myers-Briggs (MBTI), que são questionados por fazerem cortes arbitrários na realidade. Rotular alguém pode ser reducionista, ignorando a complexidade e a individualidade única de cada ser humano. Especialistas explicam que o impulso humano de classificar é um mecanismo cerebral fundamental para organizar informações e buscar atalhos no processamento de interações sociais complexas, o que explica a nossa atração contínua por esses sistemas.
Um fio condutor na busca pelo autoconhecimento
- A obsessão por classificar a personalidade humana, desde os humores de Hipócrates até os sistemas neurobiológicos atuais, revela uma verdade duradoura: o anseio por autoconhecimento e por um marco para entender os outros são inerentes à condição humana.
A lição mais valiosa dessa jornada milenar é o equilíbrio: é importante aproveitar a sabedoria histórica e a utilidade dos modelos sem nunca deixar de reconhecer a complexidade ilimitada e a individualidade de cada pessoa. A busca para entender quem somos continua, agora com mais ferramentas e, com sorte, mais humildade.