Cidadania africana: Entenda a lei do Benin que oferece nacionalidade a descendentes de escravizados
Imagine tentar montar o quebra-cabeça da sua própria história, mas descobrir que peças fundamentais foram sistematicamente apagadas. Essa é a realidade de milhões de afrodescendentes no Brasil, onde o rastro documental de seus ancestrais foi deliberadamente destruído.
Em um significativo movimento de reparação, Benin, um pequeno país da África Ocidental, está oferecendo cidadania a descendentes de escravizados de todo o mundo. Para brasileiros como o consultor de vendas Clayton Muniz Filho, aproveitar essa oportunidade não visa vantagens práticas, mas preencher um vazio identitário e reconectar-se com uma origem há muito tempo perdida.
O vazio da identidade e o gesto de reparação
A iniciativa do Benin aborda uma ferida histórica que remonta a séculos de escravidão e um deliberado apagamento de registros no Brasil.
O apagamento forçado: A queima dos arquivos
- No Brasil, a dificuldade de rastrear as origens familiares foi agravada em 1890, quando o então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, ordenou a queima dos registros de compra e venda de pessoas escravizadas. Esse ato dificultou enormemente a comprovação da ancestralidade, uma realidade dolorosa reconhecida pela própria lei beninense.
A lei de 2024: Um ato de reconciliação
Em 2024, o governo do Benin, sob a presidência de Patrice Talon, aprovou uma lei pioneira. O objetivo é duplo:
1. Promover a reconciliação: Reparar simbolicamente a injustiça monumental do tráfico transatlântico de escravizados.
2. Estratégia de desenvolvimento: Atrair talentos, investimentos e fortalecer laços culturais e econômicos com a diáspora africana, incentivando também o turismo.
Mais que um passaporte
- Para muitos, o objetivo é maior que um documento. O sociólogo Alex Vargem descreve essa busca como a tentativa de curar uma "ferida aberta". A cidadania beninense funciona como um reconhecimento oficial de uma linhagem que foi violentamente suprimida, oferecendo um senso de pertencimento e orgulho cultural.
Entendendo a Lei: O processo simplificado
O processo de obtenção da cidadania foi deliberadamente simplificado para acomodar a ausência da documentação tradicional.
Quem é elegível?
Os critérios são amplos e visam facilitar o acesso à diáspora:
- Ser maior de 18 anos.
- Não ser cidadão de outro país africano.
- Comprovar ter um ascendente da África Subsaariana deportado durante o tráfico negreiro.
- Não é necessário comprovar um vínculo específico com o Benin.
A comprovação da ancestralidade
A falta de documentos históricos é superada com o uso de tecnologia:
- Teste de DNA: Muitos recorrem a testes genéticos. Esses exames comparam o DNA com bancos de dados globais (que recentemente melhoraram a precisão com a inclusão de mais populações africanas), identificando as regiões de origem com base em marcadores genéticos compartilhados.
- Documentação histórica: Para a minoria que as possui, certidões antigas podem ser usadas, mas são extremamente raras.
Os trâmites descomplicados
A solicitação é feita de forma prática:
- Plataforma: O processo é realizado online pela plataforma My Afro Origins.
- Custo e prazo: Há uma taxa de aproximadamente
100 dólares, com prazo de conclusão estimado em três meses.
Além da prática: A dimensão filosófica e cultural
As motivações por trás dessa busca vão além de benefícios econômicos ou de mobilidade, sendo descritas como "mais filosóficas".
Pan-africanismo e orgulho
- A busca está ligada ao pan-africanismo, um movimento que prega a unidade dos povos africanos e da diáspora. O resgate identitário promove uma profunda recuperação da autoestima, fornecendo uma base histórica e cultural sólida.
Histórias de reencontro e identidade
- Personalidades como a cantora americana Ciara e a filósofa e ativista brasileira Sueli Carneiro já receberam a cidadania. Assim como elas, muitos buscam preencher as lacunas de suas árvores genealógicas.
- O chef de cozinha João Diamante, ao visitar o Benin, relatou uma sensação profunda de familiaridade, como se estivesse "voltando para casa", evidenciando a força dessa conexão cultural e emocional.
Brasil e Benin: Laços que o tempo não apagou
O Brasil foi o principal destino de africanos escravizados, recebendo cerca de 4,9 milhões de pessoas, muitas originárias da região que hoje é o Benin (o antigo Reino de Daomé).
Raízes históricas
- Cidades beninenses, como Ouidah, abrigam a "Porta do Não Retorno", um monumento que marca o local de onde centenas de milhares foram forçados a embarcar para as Américas.
A cultura resistente na Bahia
- A influência beninense no Brasil, especialmente na Bahia, é profunda e visível na religião, música e culinária. O famoso acarajé baiano, por exemplo, é uma variação direta do akará consumido no Benin e na Nigéria, simbolizando a resistência cultural através dos séculos.
O futuro da conexão
Os laços políticos e econômicos estão se fortalecendo:
- O presidente Patrice Talon visitou o Brasil e discutiu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a possibilidade de um voo direto entre os países, reduzindo a viagem (atualmente com mais de 20 horas e escalas) para cerca de 6 horas.
- Há investimentos na revitalização da Casa do Benin, em Salvador, que serve como um portal cultural e de aproximação.
O significado de escrever o prólogo
- A iniciativa do Benin é um marco simbólico poderoso. No entanto, ela apresenta desafios práticos, como os custos de testes de DNA e taxas de solicitação. Além disso, a cidadania concedida é limitada: não permite o voto (a cidadania plena exige cinco anos de residência) e oferece menos mobilidade internacional que o passaporte brasileiro.
- Apesar disso, o significado transcende os aspectos práticos. A busca pela cidadania beninense é um ato profundo de resgate identitário e resistência contra o apagamento histórico.
Como resumiu o chef João Diamante: "Só conseguimos evoluir quando sabemos de onde viemos". A iniciativa devolve a milhões de brasileiros uma peça fundamental do seu quebra-cabeça existencial: o direito de saber de onde vieram e, assim, compreender com mais clareza quem são.
