Da repressão à realidade: Como as facções criminais do Rio de Janeiro nasceram na ditadura e moldaram o tráfico

A ascensão das facções criminais no Brasil, especialmente nas periferias do Rio de Janeiro, é frequentemente vista apenas pelo prisma do tráfico de drogas e da violência. No entanto, a origem desses grupos é inseparável das políticas de repressão da Ditadura Militar (1964–1985) e da militarização do sistema prisional. Compreender sua história exige uma análise crítica de como o próprio Estado brasileiro contribuiu para o seu surgimento e consolidação.
A gênese política: Da Ilha Grande ao Comando Vermelho
A história das facções começa no sistema prisional durante o regime militar.
O contexto prisional e a Ilha Grande
- Durante a Ditadura, o governo utilizou o presídio de Ilha Grande (RJ) como um caldeirão, misturando presos políticos (militantes de esquerda) e presos comuns. A intenção era supostamente diluir a influência política. Contudo, essa estratégia teve o efeito oposto: os presos comuns, expostos à organização, disciplina e ideologia dos militantes, absorveram táticas de mobilização e resistência.
A Falange Vermelha e o nascimento do CV
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A Falange Vermelha foi o primeiro grupo pré-faccional significativo. Formada por uma aliança de presos comuns e políticos, a Falange surgiu como uma forma de resistência coletiva, focando em reivindicar melhores condições carcerárias e direitos básicos.
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A Anistia de 1979 marcou um ponto de inflexão. Apenas os presos políticos foram libertados, enquanto os presos comuns, sentindo-se abandonados pelo Estado e traídos por seus antigos aliados, radicalizaram-se. Disso surgiu o Comando Vermelho (CV), o grupo que estabeleceu o modelo faccional moderno. O CV criou códigos de conduta e mecanismos de financiamento coletivo, como a "caixinha", para custear fugas e apoiar famílias de presos.
Expansão, adaptação e a influência do tráfico
- O modelo do Comando Vermelho inspirou a criação de novos grupos, como o Terceiro Comando e o Amigos dos Amigos (ADA). No entanto, o fator que transformou radicalmente a dinâmica desses grupos foi a chegada da cocaína.
A transição para o tráfico de drogas
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A partir da década de 1980, a entrada maciça da cocaína no Brasil mudou o foco das facções. O que começou como uma luta por justiça social e direitos dentro das prisões evoluiu para uma lógica de mercado. As facções passaram a competir por territórios e rotas de tráfico, intensificando a violência e transformando-se em poderosas organizações criminosas.
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Embora tenham se tornado máquinas de lucro, algumas facções ainda mantêm, em certas comunidades, a retórica de um projeto social paralelo, atuando como "Estado" em áreas onde a presença governamental é fraca.
O papel do estado na perpetuação do problema
A atuação do Estado no Rio de Janeiro, marcada por falhas institucionais e políticas de segurança ineficazes, contribuiu significativamente para a consolidação e perpetuação das facções.
Falhas e contradições nas políticas públicas
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Política penitenciária: Tentativas de separar facções dentro dos presídios frequentemente resultaram no fortalecimento e na criação de novos grupos, como ocorreu no Presídio Hélio Gomes, que levou ao surgimento do Povo de Israel (PVI).
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Unidades de polícia pacificadora (UPPs): As UPPs, implementadas a partir de 2008, buscavam retomar territórios dominados por facções. No entanto, em muitos casos, elas não eliminaram a criminalidade organizada; apenas a deslocaram para áreas adjacentes ou, em alguns casos, permitiram arranjos corruptos entre traficantes e agentes estatais.
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O Estado não é um observador passivo. Sua atuação oscila entre a omissão, a implementação de políticas mal planejadas e a cooptação por grupos criminosos, criando um ciclo de instabilidade.
As raízes estruturais da violência faccional
A violência faccional está profundamente enraizada em problemas estruturais.
Desigualdade e exclusão
As facções prosperam em contextos de pobreza extrema, falta de acesso à educação de qualidade e ausência de empregos formais. Para muitos jovens em áreas marginalizadas, a facção representa, tragicamente, a única alternativa de ascensão social e acesso a recursos.
O ciclo de violência
A dependência de operações policiais puramente repressivas, sem abordar as causas sociais da criminalidade, não enfraquece as facções. Pelo contrário, ela fortalece o sentimento de marginalização, reforçando a lógica do "nós contra eles" e solidificando o poder das organizações criminosas.
Para além da repressão
- A história das facções criminais no Rio de Janeiro demonstra que elas são mais do que meras organizações criminosas; são produtos de um sistema marcado por profunda desigualdade, repressão e falhas sistêmicas do Estado.
Enquanto as políticas de segurança pública focarem exclusivamente no encarceramento e na força bruta, o ciclo de violência persistirá. A superação desse cenário exige uma abordagem integrada que inclua investimentos massivos em educação, geração de emprego e renda, e a redução das desigualdades sociais. Compreender essa complexa história é fundamental para desenvolver respostas eficazes e duradouras que ataquem as raízes da criminalidade.