Os 10 mandamentos do crime: O código de conduta que rege as favelas do Comando Vermelho e que não mudam após a megaoperação do estado
O Comando Vermelho (CV), uma das maiores facções criminosas do Brasil, impõe um regime de regras estritas e punições severas nas comunidades que domina. Essa "lei de ferro" molda o cotidiano de milhões de moradores, controlando desde a economia local e o transporte até a vida social e o vocabulário.
As ordens e punições do CV permanecem inalteradas, mesmo após megaoperações policiais, como a ocorrida nos Complexos da Penha e do Alemão.
O domínio absoluto do CV: O controle do cotidiano
A facção estabelece uma série de regras que regulam o comportamento e as interações dos moradores, substituindo a autoridade estatal:
- Monopólio econômico: O CV expandiu seus negócios para além do tráfico de drogas, controlando a venda de serviços essenciais nas comunidades.
- Serviços controlados: Venda de gás, TV a cabo, internet e transporte.
- Preços inflacionados: O preço de um botijão de gás, por exemplo, é significativamente mais alto nas áreas do CV (cerca de
R$ 130) do que no comércio não controlado (cerca deR$ 90). - Transporte restrito: Carros de aplicativo são proibidos de subir o morro, sendo substituídos por mototáxis e vans autorizadas e taxadas pelos traficantes.
- Cobrança e punição: Moradores que não pagam os serviços obrigatórios são cobrados diretamente e podem ser agredidos ou expulsos.
- Restrições de linguagem e vestuário: A facção dita até mesmo a forma de falar e vestir para evitar associações com rivais.
- Vocabulário proibido: É proibido usar a expressão "a gente", pois é associada à facção rival Terceiro Comando Puro (TCP). O termo obrigatório é "nóis". O erro pode levantar suspeitas de ligação com o inimigo.
- Uniformes de futebol: Houve casos em que uniformes de times de futebol (como o Chelsea) foram proibidos, pois o patrocínio estampado continha o número 3, que remete ao TCP.
O código de conduta e as punições severas
O CV aplica punições extremas para quem desrespeita suas regras, agindo como juiz e carrasco dentro da comunidade:
Proibição de brigas e roubos:
- Resolução de conflitos: Apenas membros do CV têm permissão para resolver conflitos.
- Punição a roubos: Infratores são frequentemente punidos com o corte de uma das mãos. Reincidências podem levar a serem jogados "no pneu" (incinerados dentro de pneus).
- Violência doméstica: Em casos de violência contra a mulher com provas, o agressor pode sofrer espancamento, ser expulso ou, em situações mais graves, assassinado.
Relações e assédio:
- Relacionamentos proibidos: É proibido manter laços afetivos com membros de outras facções ou com policiais.
- Cobiça de mulheres: Olhar para "mulher de bandido" é considerado uma ofensa grave, passível de agressão física ou morte.
- Traição: Casos extraconjugais, especialmente se envolverem membros do CV, podem resultar em feminicídio, dada a presença de armas e a violência no ambiente.
Punições em eventos sociais (Bailes Funk):
- Desentendimentos: Envolvimento em brigas, esbarrões, ou uso de drogas ilícitas como lança-perfume em traficantes pode resultar em "esculacho" (humilhação e agressão).
- Tortura como exemplo: O uso de tortura e agressão física não só pune o infrator, mas também serve como um "aviso visível" para toda a comunidade, reforçando o clima de medo e submissão.
Vigilância e o medo de ser informante
A comunicação e a circulação na favela são rigorosamente monitoradas pela facção:
- Barricadas: Bloqueios nas ruas servem para demarcar o território e controlar quem entra e sai, reforçando a autoridade dos traficantes.
- Restrições nas redes sociais: É proibido filmar ou fotografar a "boca de fumo" e traficantes armados. Vazamentos de vídeos podem gerar ameaças de morte.
O medo de informar (Xisnovear):
- Moradores são impedidos de procurar ajuda institucional (polícia ou delegacia) ou falar com a imprensa sobre crimes e violência.
- O medo de serem acusados de serem informantes ("xisnoverar") é um terror constante, levando a população a buscar os próprios traficantes para mediar conflitos (como assédio ou disputas internas).
O impacto na vida familiar
A presença do tráfico impõe desafios únicos e medos constantes na criação dos filhos:
- Medo do aliciamento: Uma das maiores preocupações é o aliciamento de crianças e adolescentes pelo tráfico (como atuar como "fogueteiros" — vigilantes da chegada da polícia).
- Rotina interrompida: Operações policiais frequentes e tiroteios causam o fechamento de escolas e a paralisação do trabalho, forçando os moradores a "ficarem deitadas no chão de casa".
- A violência policial: A presença policial, embora moralmente justificada, frequentemente é letal e destrutiva (casas alvejadas, acusações de abuso e mortes), criando um dilema para os moradores, que se sentem igualmente oprimidos pelo Estado e pelo crime.
O código de conduta do Comando Vermelho
Os 10 Mandamentos são amplamente conhecidos e aplicados, servindo como a base para a resolução de conflitos internos e as punições impostas na comunidade.
1. Não negar a pátria
2. Não caguetar (entregar os amigos)
3. Não cobiçar a mulher do próximo
4. Não acusar em vão
5. Não conspirar
6. Falar a verdade mesmo que custe a própria vida
7. Ser coletivo
8. Fortalecer os menos favorecidos;
9. Não quilingar (furtar outros colegas)
10. Eliminar nossos inimigos.
- Punição e controle: Moradores e traficantes que desrespeitam essas regras são punidos severamente pelo grupo, sendo a intensidade da pena definida pelos chefes locais. As sentenças variam de espancamentos e tortura a amputações (para roubos) e assassinato.
A megaoperação policial de outubro de 2025 pode ter sido um evento traumático e de grande repercussão, mas ela falhou em seu objetivo central: desarticular o Comando Vermelho e seu modelo de governança. O subsecretário de inteligência da PM do Rio admitiu que o impacto foi "ínfimo". No dia seguinte à operação, traficantes armados já circulavam normalmente pelas comunidades. A conclusão é que a "lei de ferro" do CV permanece inabalada. Ela persiste porque é alimentada por uma combinação mortal: a violência brutal da facção e a ausência crônica do Estado, que falha em oferecer proteção, serviços básicos e direitos fundamentais aos cidadãos. Enquanto essa equação não for desfeita, milhões de brasileiros continuarão vivendo sob a sombra de um poder paralelo, onde a lei é definida pelo fuzil e a justiça, pela violência.
