Playlist da despedida: A música transformando dor e saudade em conforto nostálgico no fim da vida

Imagine criar a playlist definitiva da sua vida. Esta não é uma tarefa para uma festa ou uma viagem, mas para a jornada mais profunda e pessoal: a travessia de uma doença terminal. A história do D J Dave Gilmore ilustra perfeitamente este conceito. Após anos animando as noites de outras pessoas, ele agora dedica seu tempo a curar uma coleção de músicas que foram a trilha sonora de sua existência. Esta prática, longe de ser um mero passatempo, é respaldada por evidências científicas e terapêuticas cada vez mais sólidas, mostrando como a música pode ser uma aliada poderosa nos cuidados paliativos, oferecendo conforto, conexão e uma ponte para as memórias mais preciosas.
O poder da música: Muito além do entretenimento
Os benefícios da música no fim da vida vão muito além do entretenimento. Especialistas explicam que seu impacto é tanto neurológico quanto emocional.
- Impacto cerebral multifacetado: Imagens de atividade cerebral revelam que a música "ilumina" várias partes do cérebro simultaneamente. Ela ativa centros ligados às emoções, à memória e até às sensações físicas. Sarah Metcalfe, da campanha Música para a Demência, explica que, "mesmo se uma parte do cérebro estiver lesionada, ainda é possível ter acesso às outras regiões" através da música. Isto é particularmente significativo para pacientes com demência ou que perderam outras faculdades, pois a música mantém-se como uma via de comunicação.
- Conexão emocional e sensação de normalidade: Uma pesquisa da instituição de caridade Marie Curie, com 1.000 adultos, concluiu que ouvir música com um ente querido em fase terminal ajuda a criar uma experiência compartilhada. Esta prática aproxima as pessoas, gera uma sensação de normalidade em meio ao caos e auxilia no relaxamento. A esposa de Dave, Kate, testemunhou isso quando, ao tocar música nativa americana, seu marido ansioso e exausto conseguiu, finalmente, dormir.
- O último sentido a desaparecer: A tanatologia, ciência que estuda a morte, corrobora este poder. A professora Sam Murphy, da Universidade Aberta, afirma que "existem evidências de que a audição é o último sentido a desaparecer". Isto significa que, mesmo quando uma pessoa está inconsciente ou não reage, a música ainda pode alcançá-la, mantendo-a conectada ao ambiente, aos entes queridos e às suas recordações.
Como criar uma playlist significativa: Um guia prático e emocional
A criação de uma playlist para cuidados paliativos é um processo profundamente pessoal, mas especialistas oferecem diretrizes valiosas para torná-la mais eficaz:
- Foque no período de formação: As associações musicais mais fortes são geralmente formadas entre os 10 e os 30 anos de idade. As músicas desta época tendem a ressoar com mais intensidade.
- Inclua marcos da vida: Canções associadas a lugares especiais, férias, romances, primeiras danças e músicas de casamento são extremamente poderosas. Para Dave Gilmore, "Will You?", de Hazel O'Connor, é dedicada à sua esposa, representando o começo de seu romance.
- Considere a emoção, não só a memória: Os sentimentos despertados por uma música podem ser tão ou mais importantes quanto as lembranças específicas. A enfermeira Diana Schad, que também é musicista, enfatiza a pergunta: "É isso que eles gostariam de sentir naquele momento?".
- Esteja atento a conexões inesperadas: Temas de programas de televisão, jingles comerciais ou outras melodias aparentemente simples podem ter um significado profundo e inesperado para a pessoa.
- Seja um conforto duradouro: A playlist não serve apenas para o paciente. Anna-Kay Brocklesby, cujo marido Ian faleceu, relata que, dois anos depois, as músicas que ouviam juntos ainda lhe proporcionam conforto. "A música pode nos levar para um lugar junto de Ian", diz ela. Para os enlutados, essa trilha sonora se torna um legado auditivo, uma forma de manter viva a conexão.
O legado em cada nota
A jornada de Dave Gilmore e as evidências apresentadas por especialistas pintam um quadro comovente e poderoso. A música, no contexto do fim da vida, transforma-se de um simples artefato cultural em uma ferramenta de dignidade, conexão e conforto. Ela permite que indivíduos revisitam sua história, expressem emoções e se liguem aos que amam, mesmo quando as palavras já não são mais possíveis. Mais do que uma despedida, curar uma playlist para a morte é, na verdade, uma celebração profunda da vida, nota por nota, memória por memória, criando um conforto que ressoa tanto para quem parte quanto para quem fica. É a confirmação de que, até o último suspiro, uma melodia familiar pode ser um abraço para a alma.