Devadasi: Quem são as 'escravas de Deus' exploradas sexualmente pela tradição na Índia?
O sistema Devadasi, que significa "escrava de Deus" em sânscrito, é uma tradição milenar do sul da Índia que, ao longo dos séculos, se corrompeu. O que começou como uma vocação de reverência e arte, transformou-se em uma prática que violenta os direitos humanos, persistindo clandestinamente apesar das proibições legais.
A origem sagrada e a degeneração profana
A tradição devadasi é marcada por um paradoxo trágico:
- Início nobre e artístico: Há mais de mil anos, as devadasis eram mulheres consagradas a uma divindade, atuando como artistas sacras. Eram profissionais do templo, dedicadas à dança (como o Bharatanatyam) e ao canto, gozando de alto status cultural e religioso.
- O casamento simbólico: A cerimônia de iniciação consiste em um casamento simbólico com a divindade (geralmente uma deusa), vestindo a jovem como uma noiva. Este ritual marca sua entrada no serviço do templo.
- A corrupção do sistema: Com o tempo e mudanças sociais, o sistema degenerou. A dedicação aos deuses transformou-se, na prática, em exploração sexual ritualizada. As devadasis passaram a ser vistas como propriedade do templo e, subsequentemente, como disponíveis para os homens de castas superiores.
A persistência de uma prática ilegal
O sistema Devadasi é um testemunho da lacuna entre a lei e a realidade social:
- Proibição legal: Embora esforços para proibir a prática tenham começado no período colonial britânico, um dos principais epicentros, o estado de Karnataka, só a ilegalizou formalmente em 1982.
- Atuação clandestina: Décadas após sua proibição, a prática persiste secretamente no sul da Índia. Ela é alimentada por uma combinação de extrema pobreza, baixo nível educacional e crenças religiosas distorcidas que pressionam as famílias.
- O símbolo do estigma: As devadasis são socialmente identificáveis pelo colar de pérolas e contas vermelhas que usam, um símbolo que as consagra aos deuses, mas que, na sociedade contemporânea, as marca com o estigma e a exclusão do casamento convencional.
Os rostos da exploração: Histórias de coação e sobrevivência
- A exploração brutal (Chandrika): Iniciada aos 15 anos sem entender o ritual, Chandrika foi posteriormente traficada sob falsa promessa para um bordel. Seu relato expõe a violência física e psicológica da prostituição forçada, atendendo a dezenas de clientes por dia e enfrentando agressões.
- A coação pela fé e fome (Ankita): Pertencente à casta Dalit (o grupo mais marginalizado da Índia), Ankita tentou resistir à iniciação. A pressão familiar foi intensa, incluindo privação de comida, sob a crença de que a deusa amaldiçoaria a família. Embora tenha evitado a prostituição, ela vive com o fardo do estigma e de trabalhos agrícolas precários.
- O abandono e a vulnerabilidade (Shilpa): A prima de Ankita, Shilpa, experimentou a extrema vulnerabilidade. Após sua iniciação, ela se envolveu com um homem que a engravidou e a abandonou, uma situação comum, já que as devadasis são vistas como parceiras temporárias e descartáveis, sem a proteção de um vínculo legal.
O contexto socioeconômico e os riscos
O sistema Devadasi não é apenas um problema religioso ou cultural; é uma questão interseccional de opressão:
- Interseccionalidade da opressão: Cerca de 95% das devadasis pertencem à casta Dalit, expondo-as à discriminação tripla: por casta, por gênero e por classe social.
- Ciclo de pobreza: A prática é perpetuada pela pobreza extrema. A iniciação é, para muitas famílias sem outras opções, vista como uma solução econômica temporária ou uma obrigação, tirando as meninas da escola e condenando-as à falta de perspectivas.
- Risco de saúde pública: O trabalho sexual forçado as expõe a sérios riscos de saúde. A recusa de clientes em usar preservativos leva a altas taxas de gestações indesejadas e à propagação de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), incluindo o HIV.
A luta pelo fim da tradição
O caminho para erradicar o sistema Devadasi é complexo, exigindo mais do que apenas a lei:
- Contradição estatística: Enquanto autoridades frequentemente minimizam o número de devadasis, ativistas e organizações de base apontam para a persistência da prática. Um censo de 2008 em Karnataka já havia identificado mais de 46.000 devadasis.
- A esperança da nova geração: O desejo unânime das devadasis é que a tradição termine com suas gerações. O anseio é resumido na determinação de Shilpa de não perpetuar o sistema com sua filha, um desejo que reflete a urgência de ação.
O combate exige uma abordagem multifacetada que inclua a aplicação rigorosa da lei, iniciativas de combate à pobreza, garantia de educação para as meninas e empoderamento econômico das mulheres.
