Patriarcado na Bíblia e Alcorão: As religiões monoteístas são machistas? Análise e respostas da história à teologia.

A questão central se "as religiões são machistas?"convida a uma reflexão profunda sobre as três maiores fés monoteístas: Cristianismo, Islamismo e Judaísmo. Especialistas concordam que, em grande parte, sim, elas espelham os valores das sociedades patriarcais que as fundaram, o que torna seu ritmo de transformação mais lento que o das mudanças sociais e culturais modernas.
O gênesis da desigualdade: História e teologia
O patriarcado é anterior às religiões. As doutrinas apenas assimilaram as estruturas sociais de seu tempo.
- Da Deusa à hierarquia masculina: Inicialmente, a divindade maior era frequentemente feminina, associada à vida. A transição para um divino masculino ocorreu quando a força física (na guerra e na agricultura) se tornou preponderante, moldando hierarquias sociais e religiosas.
- A ambiguidade do Gênesis: No Judaísmo e no Cristianismo, a Torá/Bíblia (Gênesis) apresenta dualidade: uma narrativa de criação em que homem e mulher são criados juntos e com igual dignidade; e outra onde Eva é criada da "costela" ou, numa interpretação de paridade, do "lado" de Adão.
- A "dominação" como consequência: A condenação de Deus a Eva ("ele a dominará") é vista por teólogos como a chave para a submissão feminina nas instituições, mas também é interpretada como uma triste consequência do pecado, e não um mandamento divino para a dominação.
O Judaísmo: Tradição, lei e o lar
O papel da mulher no Judaísmo, especialmente nas vertentes mais tradicionais, está intrinsecamente ligado à esfera do lar e ao cumprimento de preceitos.
- Matriarcas e juízas: Historicamente, o Judaísmo teve figuras femininas de poder, como Matriarcas, profetizas e até juízas.
- Separação de papéis e a Torá: Nas vertentes mais ortodoxas, há segregação de gênero no serviço religioso (mulheres não leem a Torá publicamente), baseada na premissa rabínica de que homens e mulheres têm papéis diferentes, embora complementares. Argumenta-se que a mulher, sendo espiritualmente mais "elevada", teria menos mitzvot (preceitos) para cumprir para alcançar a plenitude, focando no lar como o verdadeiro centro do Judaísmo.
- O poder do Get (Divórcio): As leis de divórcio (Halachá) foram historicamente complexas. Embora a Torá tenha dado a possibilidade de separação a ambos os lados, o poder sobre a concessão do Get (documento judaico de divórcio) tem sido uma fonte de desigualdade e controle nas comunidades mais tradicionais, embora haja esforços contemporâneos para atenuar isso com contratos pré-nupciais.
- O machismo ultraortodoxo: Em comunidades ultraortodoxas (Haredim), o machismo se manifesta de forma mais explícita através de segregação sexual em espaços públicos, restrições rigorosas de vestuário e até casamentos arranjados e obrigatórios, refletindo um extremismo que gera oposição.
O Cristianismo e a herança greco-romana
Com o advento do Cristianismo, novas camadas contextuais se sobrepuseram aos textos.
- O exemplo de Jesus: O teólogo Raylson Araujo ressalta que Jesus, como rabino, teve uma postura inovadora para sua época, incluindo mulheres em seu círculo de seguidoras e concedendo a elas protagonismo, como serem as primeiras a testemunhar a ressurreição.
- As cartas Paulinas em contexto: Textos como os que pedem que as mulheres fiquem caladas nas igrejas (1 Coríntios) ou não ensinem os homens (1 Timóteo) são frequentemente citados. O pastor batista Yago Martins contextualiza: essas orientações refletiam a norma da cultura greco-romana, onde a submissão feminina era comum. Ele e o pastor Rampogna argumentam que, em outros trechos, Paulo estabeleceu deveres de cuidado e proteção que elevavam a dignidade da mulher naquele contexto específico.
- O problema do fundamentalismo: O teólogo Gerson Leite de Moraes aponta que quanto mais fundamentalista é um grupo religioso, mais patriarcal ele tende a ser, pois assume a literalidade do texto sem considerar seu contexto histórico-social.
O Islamismo e a mudança progressiva
No Islã, a análise segue uma lógica similar, onde é crucial diferenciar a revelação original do contexto cultural no qual ela surgiu.
- Um contexto de exclusão total: O advento do Islã no século 7 ocorreu em uma sociedade tribal profundamente patriarcal. Como explicam os pesquisadores Walid e Amir Mazloum, antes do Islã, mulheres podiam ser enterradas vivas ao nascer, herdadas como propriedade e não tinham direitos legais.
- O Alcorão como agente de mudança: Nesse cenário, a revelação do Alcorão trouxe avanços revolucionários. O cientista da religião Atilla Kus afirma que o texto "virou de ponta-cabeça" a tradição excludente. As mulheres ganharam o direito à herança (mesmo que, em alguns casos, metade da do homem), ao divórcio, à propriedade e à participação na vida pública.
- A interferência cultural: Os especialistas são unânimes em afirmar que a leitura do Islã como inerentemente machista é uma distorção. O obstáculo à plena igualdade, frequentemente, não é a religião em si, mas a interferência de culturas locais patriarcais que aplicam trechos religiosos de forma seletiva para justificar desigualdades.
Tradição e a busca por igualdade
As grandes religiões monoteístas carregam, em suas bases e interpretações históricas, marcas inegáveis do patriarcado. No entanto, a análise teológica moderna revela que os textos são polissêmicos, permitindo leituras que defendem a igualdade radical entre homem e mulher. O machismo percebido hoje é a perpetuação de estruturas sociais antigas, muitas vezes reforçada por interpretações fundamentalistas. A chave para a transformação reside na conscientização crítica, na laicização dos Estados e na recuperação dos princípios de misericórdia e amor que inspiram novas e mais igualitárias expressões de fé.