Violência infantil e namoro adolescente: Como traumas da infância afetam relações afetivas atuais - Estudo UERJ, UFRJ, Harvard
O trauma vivido na infância não desaparece; ele ecoa, de forma significativa e preocupante, nos relacionamentos afetivos da adolescência. Esta é a conclusão de uma pesquisa interinstitucional conduzida por especialistas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Escola de Saúde Pública de Harvard. O estudo, publicado na renomada revista Cadernos de Saúde Pública em outubro de 2025, investigou como as experiências adversas do passado moldam negativamente as dinâmicas de afeto entre os jovens.
O contexto da pesquisa: Um olhar sobre a desigualdade no Rio de Janeiro
O estudo foi realizado com 539 estudantes do segundo ano do ensino médio, com idades entre 15 e 19 anos, provenientes de escolas públicas e privadas.
Onde os dados falam:
- A coleta ocorreu em uma região administrativa do Rio de Janeiro que abrange bairros como Andaraí, Grajaú, Maracanã e Vila Isabel. Embora seja uma área com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) relativamente alto, ela é marcada por uma intensa desigualdade social, onde comunidades de baixa renda coexistem com bairros de classes média e alta.
A ferramenta:
- Os participantes responderam anonimamente a um questionário detalhado, originalmente desenvolvido no Canadá, que mensurava diferentes formas de violência no namoro. O foco foi tanto na vitimização (sofrer violência) quanto na autoria (praticar violência).
Alertas: As prevalências alarmantes de violência no namoro
As descobertas revelam taxas de violência nos relacionamentos juvenis que demandam atenção imediata, apontando a violência emocional como uma verdadeira epidemia:
- A epidemia emocional: A forma de violência mais comum foi a emocional, afetando impressionantes 94,6% dos adolescentes. Isso inclui atitudes como humilhação, controle excessivo, ciúmes patológico e xingamentos.
- Agressão física: Um em cada três adolescentes (30,1%) relatou ter sofrido violência física por parte do(a) parceiro(a).
- Ameaças e violência sexual: Comportamentos ameaçadores foram vividos por 26,6% dos jovens. A violência sexual (toques não consentidos ou atos forçados) foi reportada por 16,7% dos participantes.
- Naturalização perigosa: A similaridade entre as taxas de vitimização e autoria sugere que a violência é frequentemente recíproca. Este dado indica uma perigosa normalização desses comportamentos como parte "aceitável" de um namoro.
- Diferenças de gênero: Os meninos relataram ser mais vitimizados por violência física, enquanto as meninas relataram cometer mais ameaças e violência física. A autoria de violência sexual foi mais frequente entre os meninos.
A profundidade da conexão: O vínculo com o passado e o contexto social
O estudo estabelece um elo inegável entre a violência no namoro e as experiências de vida anteriores do adolescente, comprovando a transmissão do trauma:
O histórico de trauma inicial:
- A maioria dos entrevistados relatou ter sofrido algum tipo de abuso ou negligência durante a infância, criando o ponto de partida do ciclo de violência.
Exposição à violência comunitária:
- O contexto social violento potencializa o risco. Quase 60% dos estudantes afirmaram já ter visto um corpo assassinado ou ter tido um familiar vítima de assassinato, expondo-os a um trauma profundo e constante.
Fatores de risco adicionais:
A violência no namoro foi significativamente mais frequente nos grupos que vivenciaram experiências adversas, como:
- Ter amigos envolvidos em violência juvenil (cerca de 40%).
- Consumo de álcool nos três meses anteriores à pesquisa (cerca de 80%).
Por que este estudo importa: Bases para uma ação imediata
Esta pesquisa não apenas mapeia um problema, mas também fornece direcionamento estratégico para enfrentá-lo:
- Evidência centífica robusta: O estudo fornece dados empíricos cruciais que comprovam a ligação entre a violência na infância, o contexto social e a violência nos relacionamentos juvenis, um tema ainda pouco explorado no Brasil.
- Direcionamento de políticas públicas: Os resultados destacam a necessidade urgente de ações de prevenção e intervenção que considerem a trajetória de vida completa do adolescente, e não apenas o episódio isolado de violência no namoro.
- O papel central da escola: A pesquisa posiciona a escola como um espaço privilegiado e essencial. Dada sua capilaridade, é o ambiente ideal para abordar o tema, promover relações saudáveis e ativamente quebrar o ciclo da violência.
A violência não é um evento isolado, mas um eco devastador que ressoa pelas fases da vida e esferas sociais, moldando desde a infância as complexas e, muitas vezes, dolorosas dinâmicas dos relacionamentos adolescentes; este cenário alarmante de prevalências exige, portanto, uma mobilização urgente e multidimensional unindo famílias, escolas, serviços de saúde e comunidade para romper o ciclo perverso através de intervenções precoces, fomentando a parentalidade positiva e cultivando relações pautadas no respeito, transformando este estudo em um catalisador vital para um debate e ações imediatas sobre este grave problema de saúde pública.
