Doutrina Donroe: O novo "muro" de Trump e o xeque-mate na China via América Latina
Por décadas, a política externa dos Estados Unidos para a América Latina foi frequentemente descrita como um misto de "negligência benigna" e intervenções pontuais. No entanto, sob a gestão de Donald Trump, essa dinâmica sofreu uma ruptura drástica. A publicação da Estratégia de Segurança Nacional (NSS) em dezembro de 2017 e o subsequente endurecimento do discurso em 2019 marcou o retorno explícito da Doutrina Monroe, mas sob uma ótica profundamente transacional e nacionalista.
O que analistas apelidaram de "Doutrina Donroe" não é apenas uma homenagem ao passado; é uma reengenharia geopolítica que transforma o Hemisfério Ocidental na linha de frente da segurança interna americana. Em vez de buscar parcerias de desenvolvimento multilateral, essa visão encara a região através de uma lente de custo-benefício, onde a estabilidade do vizinho é valorizada apenas na medida em que protege os interesses do "America First".
A essência da "Doutrina Donroe": Soberania vs. Esfera de influência
- A Doutrina Monroe original (1823) buscava impedir o colonialismo europeu; a versão de Trump foca em impedir a "colonização econômica" da China e a influência política de adversários como Rússia e Irã.
- A "Doutrina Donroe" opera sob a premissa de que a América Latina é uma extensão da fronteira dos EUA. Para Washington, a soberania dos países vizinhos torna-se secundária diante da necessidade de manter o controle sobre o hemisfério. Como observa o analista Will Freeman, esta não é uma doutrina de cooperação, mas sim uma declaração de dominância que justifica o uso de pressões diplomáticas e econômicas para alinhar governos às prioridades de segurança da Casa Branca.
Os três pilares de uma vizinhança militarizada
A estratégia de Trump para a região é sustentada por três eixos de ação que fundem a política externa com as demandas do seu eleitorado doméstico:
1. A muralha burocrática e geográfica: A migração é tratada como uma crise de segurança nacional. Países como México, Guatemala e El Salvador deixaram de ser apenas vizinhos para se tornarem "tampões" migratórios. Através de ameaças tarifárias e acordos de "País Terceiro Seguro", a Doutrina Donroe obriga os vizinhos a terceirizarem o controle de fronteira dos EUA.
2. O novo combate ao narcotráfico: Com a crise do fentanil atingindo proporções catastróficas, a abordagem deixou de ser meramente policial. A nova visão defende o uso de força letal e inteligência militar contra cartéis, tratando-os como organizações terroristas. Isso representa uma mudança de paradigma: a América Latina não é apenas um fornecedor de drogas, mas um campo de batalha para intervenções de precisão.
3. A barreira contra rivais extrarregionais: A presença da China na região através de empréstimos, infraestrutura e tecnologia 5G é vista como uma intrusão hostil. A Doutrina Donroe busca forçar um "divórcio econômico" entre os países latinos e Pequim, utilizando incentivos para o nearshoring (trazer indústrias de volta ao continente) como uma cenoura, e sanções como o chicote.
O pragmatismo das recompensas e punições
A relação sob a Doutrina Donroe é estritamente bilateral e transacional. Não existe uma política única para o continente, mas sim um sistema de pontuação individual:
- Aliados ideológicos: Governos que ecoam a retórica de Trump ou que facilitam suas políticas migratórias e de segurança recebem apoio direto. Isso ficou evidente no suporte financeiro maciço à Argentina em 2018 e nos acordos comerciais preferenciais com países que aceitaram conter o fluxo de migrantes.
- Regimes antagônicos: Países como Venezuela, Cuba e Nicarágua, o chamado "Triângulo da Tirania" enfrentam a face mais dura da doutrina. Nestes casos, a estratégia é de asfixia econômica e isolamento diplomático, visando a mudança de regime para restaurar a influência americana absoluta na área.
Uma percepção de ameaça sobre oportunidade
- A grande crítica de especialistas como Bernabé Malacalza é que a Doutrina Donroe falha ao não oferecer uma visão positiva de futuro para a América Latina. A região é vista predominantemente como uma fonte de problemas: imigrantes, drogas e corrupção que "vazam" para os Estados Unidos.
- Enquanto potências rivais oferecem investimentos em infraestrutura e comércio de longo prazo, a estratégia americana foca na contenção de danos. O resultado é uma vizinhança que se sente vigiada e pressionada, mas não necessariamente integrada em um projeto de prosperidade comum.
O legado do realismo transacional
A "Doutrina Donroe" representa o triunfo do realismo político sobre o idealismo diplomático. Ela resgata o espírito de 1823 para um mundo globalizado, onde o controle de fluxos (pessoas, dados e mercadorias) é a nova forma de poder. Para a América Latina, isso significa navegar em um ambiente onde a autonomia nacional é constantemente testada pelos interesses imediatos de uma superpotência focada em si mesma. É, em última análise, a aplicação prática do "America First" no jardim de casa: assertiva, imprevisível e profundamente centrada na segurança da fronteira.
